Discordando de Darwin

O título dessa postagem, não estou alheio a esse perigo, pode atrair a atenção de alguns criacionistas — mais ainda aquela cepa de criacionistas que leem apenas o título do artigo — que prontamente irão compartilhá-lo com uma descrição do tipo “até o autor do blog Biologia Evolutiva diz que evolução não existe”. Contudo, qualquer pessoa um pouco mais lúcida perceberá, lendo o post, que não se trata disso, mas sim de algo bem diferente: para a ciência não interessa quem disse, mas o que foi dito. Argumentos de autoridade não têm lugar nas ciências. Não importa se Einstein disse isso, ou se Newton disse aquilo: se o enunciado está errado, não importa quem o enunciou, ele está errado e acabou. Por isso, discordar de autoridades é não apenas saudável para as ciências, mas na verdade uma de suas características sine qua non. Continuar lendo

Percepção e realidade

Uma palavra: umwelt.

Quando comecei a estudar etologia, há muitos anos, esse foi um dos conceitos que mais me marcou, e um dos que mais me fascina até hoje. De uma maneira extremamente resumida e simplória, umwelt é o mundo como ele é experimentado por um determinado organismo. Como é o mundo para uma gaivota? Como é o mundo para um carrapato? Como é o mundo para um besouro? Tente não cometer aqui um erro básico: quando Thomas Nagel perguntou “como é ser um morcego”, muita gente tentou imaginar como deve ser a experiência de uma mente humana tendo acesso ao mundo exterior através dos órgãos sensoriais de um morcego, ou, de forma mais simplificada, como seria se você transportasse magicamente uma mente humana para o corpo de um morcego. Mas não é isso que entendemos por umwelt: a umwelt do morcego, ou seja, “como é ser um morcego”, só pode ser corretamente compreendida quanto imaginamos de que forma a mente de um morcego (e não a de um ser humano), usando os órgãos sensoriais de um morcego, percebe o mundo, a realidade externa subjetiva. Continuar lendo

Ha Ha Ha (Ou: Sobre o riso)

Se a inveja matasse, eu já teria tido algumas dezenas de mortes repentinas. Não estou falando de riqueza, mansões, carrões ou outros bens materiais, um imbecil qualquer pode ser um milionário; aliás, geralmente, a riqueza não está associada ao trabalho ou ao merecimento. Estou falando de talento, de criatividade. Milha mulher costuma dizer, quando vemos algum vídeo ou alguma arte plástica de tirar o fôlego, que certas pessoas são tão talentosas que fazem com que nós nos sintamos um nada, um inútil! Continuar lendo

“Mentira” e outras palavras bonitas

Tenho um grande prazer, cujas origens me escapam, de conhecer e de brincar com a etimologia. Não o nego, apesar de ter certas razões para tal. Contudo, ao custo de um esforço deliberado, não sou daqueles que se apegam ferrenhamente ao significado primeiro da palavra (se é que há tal coisa) e que não compreendem que as palavras cambiam. Essas vicissitudes são, na verdade, uma das características mais interessantes das línguas e das linguagens. Continuar lendo

A idade média é agora: uma pequena nota sobre gatos

Até meados do século XVIII praticamente não havia uma história natural ou, em termos mais modernos, um estudo da natureza em que seus elementos fossem considerados por si só, independente de alguma relação que pudessem ter com o ser humano. De forma geral, não apenas a existência da natureza como um todo era encarada por um ponto de vista extremamente antropocêntrico (os demais seres vivos existiam com o único propósito de servir ao ser humano), mas o próprio mundo da vida selvagem encontrava-se repleto de “imagens especulares para as relações humanas”, como nos diz Keith Thomas em seu “Man and natural world”. Enquanto as plantas eram imbuídas de assinaturas, entre os animais encontrávamos as mais variadas facetas dos comportamentos humanos. Cada animal simbolizava uma qualidade ou um defeito dos homens. Continuar lendo

Seleção para o comportamento

Prolegômeno: Antes que os puristas da língua e gramáticos de plantão reclamem do título da presente nota (“quem seleciona seleciona algo”, dirão, “portanto é seleção de, e não seleção para”), a fórmula seleção para tem um sentido bem determinado em biologia evolutiva, conforme proposto por Sober. Esse, por sinal, pode ser o tema para uma nota futura.

Que muitas pessoas vivem de aparência não é novidade pra ninguém. Um infeliz exemplo disso é a triste condição de uma quantidade inimaginável de cães abandonados e em perfeitas condições para adoção, preteridos em favor de cães “de raça”, seja isso o que for (para quem não compreendeu o sarcasmo, eis uma nota a respeito), comprados em pet shops ou, absurdo dos absurdos, em puppy mills. Escolhendo o seu cão por critérios puramente estéticos, esquecem ou escolhem ignorar a principal característica dos cães, aquilo que tanto contribuiu para nossa relação com essa variedade de lobo: seu comportamento. Continuar lendo

As capacidades sobrenaturais dos outros animais

A biologia evolutiva é uma ciência que olha para o passado. Numa época onde os chavões imperam e a baboseira empresarial de auto-ajuda é chamada de “literatura”, olhar para o passado é um absurdo inadmissível, inaceitável: não se olha para o passado, é para o futuro que se olha, dirão alguns. Bem, em primeiro lugar, convém lembrar que a biologia evolutiva é uma ciência, cuja metodologia não deve variar ao sabor das escolas filosóficas dominantes ou das visões políticas preponderantes; este foi um parágrafo um tanto obscuro para alguns, cujo esclarecimento demandará uma ocasião especial. Em segundo lugar, não há nada de inerentemente errado em se olhar para o passado. Continuar lendo