Abiogênese versus Geração Espontânea

Recentemente, uma imagem relacionando uma ejaculação à quantidade de informação contida em seus espermatozoides tornou-se viral na internet. Exagero meu, ela não está sendo tão compartilhada assim: digamos, portanto, que se tornou um semi-subviral. A questão é que há diversos problemas com o pôster (e, por isso mesmo, não irei divulgá-lo aqui). Em primeiro lugar, ele afirma que o DNA de um único espermatozoide possui 37,5 MB de informação. Não sei como ele chegou a esse número, mas um cálculo bem simples nos mostra que o número é bem maior. Um lote haploide de cromossomos, exatamente o que temos num espermatozoide, possui 23 cromossomos, cujos DNAs, somados (desconsiderando as diferenças entre o cromossomo X e o cromossomo Y), possuem 3.200.000.000 de pares de bases. Cada par de bases corresponde a 2 bits: há 4 bases, A, C, G e T, e podemos escrevê-las em binário como 00, 01, 10 ou 11. Portanto, considerando bytes de 8 bits, basta dividirmos 3.200.000.000 por 4 para termos como resultado que o DNA de um lote haploide corresponde a 800MB de dados. Aliás, eu já havia feito um pôster sobre isso (veja aqui) recentemente. Em seguida, o texto da imagem semi-subviral diz que uma ejaculação representa uma transferência de informações correspondente a 1.587GB em 3 segundos (e, logo abaixo, faz uma brincadeira com as velocidades do 4G). Mas, se dividirmos 1.587.000MB por 37,5MB, vamos chegar ao valor de 42.320 espermatozoides por ejaculação. Esse rapaz está com uma oligospermia severa, uma vez que o número normal é de 500.000.000 de espermatozoides por ejaculação. Mas o principal erro não é nenhum desses. Continuar lendo

Epigenética e Lamarquismo

Costumo introduzir meus artigos com um assunto aparentemente sem relação alguma com o tema central. Esse costume não é de forma alguma uma ideia original minha, aprendi a escrever assim lendo os ensaios de Stephen Jay Gould na Natural History. Minha mulher, por sinal, detesta essas “enroladas desnecessárias”, e preferiria que eu escrevesse indo direto ao ponto. Às vezes eu mesmo, ao reler alguma postagem, acho esse meu hábito meio chato. O presente artigo, contudo, é sobre um assunto tão complexo e indigesto que terei que abandonar completamente esse meu hábito Gouldiano de “enrolar”, se eu quiser que algum leitor entenda alguma coisa. Na verdade, farei até mesmo um breve roteiro do que irei explorar, um roadmap, a fim de aumentar a compreensão do leitor: irei inicialmente defender que a ciência é um processo objetivo, que procura eliminar a subjetividade, os preconceitos e as paixões humanas, e irei defender que isso é possível. Farei isso para poder, de forma objetiva e imparcial, passar para o tópico seguinte, que é o de esclarecer o conceito de “lamarquismo”, e já adianto que não é o que a imensa maioria dos livros didáticos e dos sites da internet dizem ser. Em seguida, irei brevemente explicar o que é epigenética, seus mecanismos e as recentes descobertas nesse campo. Ao final, irei discorrer sobre se a epigenética representa ou não um renascimento do lamarquismo, e qual a importância disso para a biologia evolutiva. Muito bem, mãos à obra. Continuar lendo

1% de diferença. O que isso significa?

A alfabetização científica é um processo fundamental. No entanto, durante a vulgarização de certos conceitos, mal-entendidos podem e vão acontecer, e o que chega ao público leigo é bem diferente do que partiu da comunidade científica. Boa parte dos vulgarizadores está bem consciente disso. Por exemplo, os livros-texto de genética ou evolução costumam alertar repetidamente que o conceito de herdabilidade que o público leigo possui (quantos por cento de uma característica se devem a fatores genéticos) difere substancialmente do conceito correto (quantos por cento das diferenças de uma característica, observadas numa população, se devem a fatores genéticos), e isso tem consequências sérias para a correta compreensão do conceito de herdabilidade, como se pode perceber na tão comum (e sem sentido) pergunta “quanto da inteligência se deve aos genes e quanto se deve à influência do ambiente?”. O fito da presente nota é discutir sobre um mal-entendido semelhante, um conceito ou informação científica que, ao ser vulgarizada, foi deturpada de tal forma que levou a uma derivação absurda em meio ao público leigo. Eis a informação: “O DNA de um ser humano (Homo sapiens) e o de um chimpanzé (Pan troglodytes) diferem em apenas 1%”. O que isso significa? Tentarei mostrar que essa informação, a não ser que você seja um(a) geneticista ou trabalhe com construção de filogenias, tem o seguinte significado: nenhum. Devo alertar, antes de prosseguir, que o que passo a alegar logo abaixo não é nada inédito, muito menos conclusões de minha cabeça, lavra própria; diversos livros de evolução ou genética fazem o mesmo alerta, ou um alerta semelhante. Contudo, como uma das propostas deste blog é a vulgarização científica, creio ser pertinente falar desse assunto pois suspeito que infelizmente, entre o público leigo, paira uma conclusão fundamentalmente incorreta, derivada dessa informação sobre o DNA dos humanos e dos chimpanzés. Continuar lendo

Qual a sujeira do DNA-lixo?

Definições esclarecem. Definições, porém, às vezes complicam, e em muitos casos de forma completamente desnecessária. Como partidário de uma “biologia do esclarecimento” (para buscar, como Kant, a fuga da menoridade intelectual), creio que as definições devem ser não apenas bem compreendidas mas, antes de tudo, bem construídas: e essa é uma atribuição dos pensadores que constroem o conhecimento científico. Por exemplo: no meu entender, poucos termos são mais infelizes que pseudoceloma. O que se quer dizer com isso, que os nemátodos não têm cavidade corporal? Certamente eles a possuem. Mas se a réplica é “a cavidade corporal dos nemátodos não é a mesma dos anelídeos ou dos moluscos”, por que não criar uma definição mais feliz, uma opção mais adequada? Blastoceloma é certamente uma dessas opções, pois “pseudo” (do grego ψευδος) significa mentira, falsidade. Por falar em mentira e falsidade, outro termo que me vem à mente é pseudópode: porque chamar de falsa uma estrutura real, que serve à locomoção? O termo rizópode (referindo-se à estrutura, e não ao grupo) seria bem mais adequado. Perceba que a justificativa de que os pés das amebas não são pés verdadeiros é incorreta porque nos levaria ao questionamento de “o que é um pé verdadeiro”? O “pé” aqui e em outros casos da biologia é definido por sua função. Se pé verdadeiro é a pata de um tetrápode, mudemos o nome dos Arthropoda também, pois seus apêndices locomotores (id est, seus pés…) não tem relação alguma com a pata dos tetrápodes. Continuar lendo