Falácias do apelo à natureza

Numa postagem anterior, intitulada por que sou utilitarista, referi-me brevemente ao conceito de falácia, e em particular às falácias do apelo à natureza. Como infelizmente vivemos numa sociedade em que cada vez menos se conhece os conceitos básicos da filosofia e da lógica matemática, e em que os colégios e universidades entopem os alunos com informações que eventualmente não possuem nenhuma utilidade e negligenciam o que de fato é importante para a formação do cidadão cientificamente e filosoficamente alfabetizado, boa parte das pessoas desconhece o que sejam falácias do apelo à natureza. Detalhar um pouco mais esse conceito é o fito desta breve nota.

Em primeiro lugar, convém explicarmos o que são falácias, antes de detalharmos o que são as falácias do apelo à natureza. Para isso, precisamos inicialmente explicar o que é um argumento. Em lógica e em filosofia, um argumento consiste em dois ou mais enunciados ou afirmativas (também chamadas de proposições, declarações, sentenças…), uma das quais é denominada conclusão. A conclusão é a afirmativa que presumidamente é suportada, justificada e demonstrada pelas premissas, as afirmativas iniciais do argumento. Um argumento típico é escrito na forma “os homens são mortais (premissa); então, tu, que és homem, morrerás um dia (conclusão)”. Uma boa fonte para iniciantes em lógica e filosofia é o excelente livro “South Park and Philosophy”, de Robert Arp, da Blackwell Publishing. Não, eu não estou brincando, o nome do livro é mesmo “South Park and Philosophy”. E sim, o South Park do título é mesmo o famoso desenho de Stan, Kyle, Kenny e Eric Cartman…

As falácias, ou raciocínio falacioso, ocorrem quando se constrói inadequadamente ou incorretamente conclusões a partir de premissas que não suportam aquelas conclusões. Numa rápida busca pela internet inúmeros exemplos de falácias podem ser coletados. Eis aqui apenas alguns:

  • Dicto simpliciter: “cortar alguém com uma faca é crime. Cirurgiões cortam pessoas. Logo, cirurgiões são criminosos”
  • Magister dixit: “Se isso foi dito por Aristóteles, isso é verdadeiro”
  • Non sequitur: “Esse rapaz fala oito línguas. Logo, deve ser um excelente matemático”
  • Argumentum ad populum: “a maioria das pessoas crê em alienígenas. Logo, eles existem”
  • Cum hoc ergo propter hoc: “sempre que aponto para uma estrela cresce uma verruga em meu dedo, logo as verrugas são causadas pelas estrelas”
  • Falsa dicotomia: “se você não é politicamente de esquerda, tem que ser de direita”

Entre esses vários modelos de falácias encontram-se as falácias do apelo à natureza. De maneira bem simplificada, uma falácia do apelo à natureza é um raciocínio em que se tenta construir conclusões sobre comportamentos éticos baseadas em premissas que associam o bom, o correto ou o desejável à propriedades “naturais”. De maneira mais simples ainda, falácias do apelo à natureza são aquelas que definem tudo que é bom como natural, ou que usam os critérios de natural ou não-natural para definir respectivamente o bom e o mau em ética.

Exemplo de falácia do apelo à natureza: escovar os dentes não é algo "natural" e, portanto, só pode ser nocivo.

Exemplo de falácia do apelo à natureza: escovar os dentes não é algo “natural” e, portanto, só pode ser nocivo.

Os exemplos de falácias do apelo à natureza são muito mais abundantes do que poderíamos imaginar a princípio, e estamos cercados deles. Para iniciarmos com os aspectos éticos, mais diretamente relacionados aos trabalhos de Moore, poderíamos falar da justificativa (no sentido declarar como justo, correto…) de comportamentos humanos. Por exemplo: “na natureza há diversos exemplos de estupro; há mesmo borboletas que fecundam as fêmeas antes mesmo delas saírem de seus casulos”. O estupro é um crime, e deve ser condenado como tal. O estuprador, para quem não está familiarizado com análises psicológicas, tem prazer com a dor, e matará mais cedo ou mais tarde. Assim, os estupros não podem ser justificados pela existência de supostos correlatos na natureza. Outros argumentos são os do tipo “machos de mamíferos normalmente copulam com o maior número possível de fêmeas”, para justificar um adultério. Alguém pode até tentar “explicar” a origem filogenética de um comportamento, mas não se pode defender o comportamento em si com base nessas premissas. Um outro grupo de falácias do apelo à natureza, ainda no campo da ética, são aquelas que associam o mau ao não-natural. Por exemplo: “não há homossexualismo na natureza. Logo, os homossexuais são perversos e doentes”.

Ainda no campo da ética, não poderíamos deixar de falar de Herbert Spencer, associado ao tão nocivo conceito de darwinismo social (em meu livro, discuto brevemente o papel de Hofstadter, autor de “Social Darwinism in American Thought”, como o principal responsável por essa visão que hoje temos de Spencer). Basicamente, poderíamos dizer que “se os europeus invadiram a áfrica e dominaram os africanos, foi porque os europeus estavam mais bem desenvolvidos tecnologicamente, e portanto mais aptos no processo de competição”. A falácia aqui reside em associar o domínio de uma classe ou de um povo a um processo seletivo: se aquela classe domina, dizem, é porque venceu o processo de competição. Mais uma vez, tenta-se justificar um processo ou situação apelando para uma explicação “natural”. O que se esquece, nesses casos, é que isso não justifica uma guerra, uma invasão, uma chacina ou uma escravização.

Saindo do campo da ética, os exemplos são mais abundantes ainda. Estava recentemente falando sobre a importância do tratamento dentário em cães e gatos domésticos. Sempre que falo isso, alguém normalmente revida: “mas, na natureza, os cães e os gatos não escovam os dentes”. Nem os seres humanos, vale lembrar. Acontece que na “natureza”, um cão (falando de cães selvagens reintroduzidos, pois cães não existiam antes da domesticação do lobo…) estatisticamente não chega a quatro ou cinco anos de idade. Ou seja, se você quer que seu totó viva mais que isso, convém tomar cuidados que não ocorrem num ambiente natural. Outro exemplo que gosto de citar é o do “suco”: “suco é bom porque é natural”… que suco? Qualquer suco? Ricinina, estricnina, tetrodotoxina, digitalina, são todas toxinas naturais, e que matam bem rapidamente.

Uma das expressões que mais abomino é “na natureza o ser humano não fazia tal coisa…”, pra justificar um ou outro comportamento. Quando digo que evito comer carne, me dizem “na natureza o ser humano comia carne” (o que é incorreto; todas as cinco espécies de hominídeos têm uma base alimentar vegetal). Mas o que querem dizer com isso? Na natureza o ser humano não vivia em média mais de vinte anos, e na natureza o ser humano não constituía uma população de sete bilhões de indivíduos. Normalmente, quem diz isso está de roupa, tem um celular e se desloca de carro, coisas que também não ocorrem nessa suposta “natureza”.

15 comentários sobre “Falácias do apelo à natureza

  1. Não acho que seu argumento sobre a superioridade competitiva dos povos europeus em relação a outros povos seja falacioso. A superioridade tecnológica, econômica e militar dos povos europeus e seus descendentes para mim é um fato que podemos perceber facilmente no nosso cotidiano e em torno do qual vários argumentos, falaciosos ou não, podem ser construídos. Dentre os primeiros destaco dois que considero mais importantes.

    A falácia genética: A falácia aqui reside na idéia de que o domínio dos povos europeus (ou de quaisquer povos sobre outros) seja devido a alguma vantagem biologicamente inata a população humana européia. Defensores modernos dessa falácia poderiam apelar para a existência de, por exemplo, um gene para inteligência cuja freqüência fosse significativamente maior nas populações européias. Essa falácia é fácil de ser desmascarada. Primeiro pelo fato de que não existe evidência alguma de que tal gene sequer exista, segundo pelo fato de que as evidências atuais apontam que os principais fatores que levaram a discrepância entre os desenvolvimentos tecnológicos dos diferentes povos do mundo residem em última análise em peculiaridades ambientais nos locais em que esses povos se desenvolveram, tais como disponibilidade de animais e plantas para domesticação (Diamond – 1997)

    A falácia determinística: A princípio poderíamos considerar todos os fenômenos do universo como sendo causas e/ou consequências de outros fenômenos, independente de suas bases residirem em processos químicos, físicos, biológicos, etc. Dessa forma seria apenas uma questão de tempo até os cientistas descobrirem todas as combinações possíveis de eventos e calcular a probabilidade de cada um estar relacionado ao outro, até obter uma sequência de eventos correlacionados com um nível de significância o mais alto possível. Nesse dia todos os principais enigmas do universo estariam solucionados e o homem poderia fazer previsões acerca de quaisquer eventos, mesmo sobre aqueles influenciados por inúmeras variáveis, como a evolução e o pensamento. A história seria apenas uma sequência de fatos encadeados e acontecimentos como o massacre de milhões de índios pelos povos europeus seriam considerados no máximo como infortúnios inevitáveis. Isso é uma falácia. Independentemente de a ciência chegar ou não a esse ponto, abstrair valores morais, sejam eles bons ou ruins, com bases em hipóteses mal consolidadas jamais deixará de ser um deserviço a humanidade.

    • Caro Ricardo,
      acho que não deixei claro o que quis dizer: é óbvio que os europeus eram superiores tecnologicamente aos africanos, quando da colonização européia na África. A falácia aqui reside em associar algo “natural” (no caso, a competição) a algo “bom”. Assim, a falácia do darwinismo social está em tentar justificar a dominação européia alegando uma superioridade competitiva, quando atos de violência como esses não têm justificativa.
      abraço.

      • É verdade, mas ainda tenho uma dúvida, descartando qualquer tipo de intrepetação moral, você não acha que a dominação européia sobre os povos americanos seja um exemplo de seleção de grupo?

      • creio que não, pois é um fenômeno que não se deve a diferenças genéticas entre os participantes. além disso, a taxa reprodutiva média não tem mais muita importância, nesses eventos históricos de dominação…

      • Gostaria apenas de acrescentar uma observação que, mesmo que não necessariamente implicada na argumentação de vocês creio que é de extrema relevância.

        Trata-se de lembrar que o argumento da superioridade, por exemplo, técnica dos europeus muitas vezes é identificada enquanto uma superioridade cultural em todos os âmbitos. Isto seria, certamente, uma falácia. Se os europeus tiveram acesso à pólvora e outros meios tecnológicos que aprimoraram sua possibilidade de dominar outros povos, isto não significa que esta “civilização” seja superior moralmente, mais rica em termos de cultura artística e mesmo intelectualmente. Significa apenas que possuem maiores capacidades bélicas e estratégicas.

  2. quanto à poligamia, novas informações publicadas na ultima edição da Science mostram indícios de que nossa linhagem, já no Mioceno (antes, por exemplo, das primeiras ferramentas) era monógama.

  3. AS FALÁCIAS NATURALISTAS JUSTIFICAM A CORRUPTIBILIDADE OCORRIDA NA NATUREZA?

    OS DESVIOS NO COMPORTAMENTO HUMANO CORROBORAM A CULTURA DA CORRUPÇÃO TÃO DIVULGADA E PRATICADA NA ATUALIDADE?

  4. Olá, Gerardo!!!

    Primeiramente, parabéns por seu post! Mas, devo lhe confessar que um comentário seu me intrigou, é o seguinte:

    -” A falácia aqui reside em associar algo “natural” (no caso, a competição) a algo “bom”.

    Minha dúvida se dá no sentido de que, não acho que o naturalismo seja o dono da palavra “competição”. Não foi porque Darwin cunhou este termo para designar um processo evolutivo que ela dirá só respeito a algo, exclusivamente, natural…

    Nesses termos, a competição também ocorre de modo social, a “competição” não seria uma prerrogativa “apenas’ natural, mas também social, depende do modo pelo qual ela se instrumentaliza…

    • Olá Cláudia,
      Você está correta, a competição não é um fenômeno que se dá apenas no ambiente natural. Mas o que ocorre é que, na construção de uma falácia naturalista, a ocorrência do fenômeno no meio natural caracteriza como “boa” todas as outras ocorrências.
      Abraço.

  5. Pingback: Natural não é sinónimo de benéfico « COMCEPT

  6. Você está redondamente enganado: o darwinismo social não tenta justificar eticamente dominação de um povo sobre outro ou coisa alguma desse tipo; o darwinismo social é uma ciência, e assim não faz declarações de valor, se baseia apenas em fatos. É óbvio que as diferentes capacidades intelectuais ou de força dos mais diversos povos é uma explicação natural para a dominação de um povo sobre o outro, ao longo de toda a história; isto é uma explicação de um fenômeno, e uma constatação de um fato, isenta de qualquer juízo de valor ético. É uma simples constatação, e não faz parte de uma ciência factual como o darwinismo social emitir juízos éticos. Se eu explico que uma tribo de índios trucidou outra porque construiu flechas envenenadas e mais certeiras, isso não é um juízo de valor, mas uma explicação objetiva de um fato. Me desculpe a franqueza, mas caluniar e distorcer desta forma o darwinismo social é desonestidade politicamente correta ou desconhecimento de seu método e seus objetivos.

  7. Pingback: ANIMAIS: Direito a vida X Argumentos de superioridade | Julismo

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