Abiogênese versus Geração Espontânea

Recentemente, uma imagem relacionando uma ejaculação à quantidade de informação contida em seus espermatozoides tornou-se viral na internet. Exagero meu, ela não está sendo tão compartilhada assim: digamos, portanto, que se tornou um semi-subviral. A questão é que há diversos problemas com o pôster (e, por isso mesmo, não irei divulgá-lo aqui). Em primeiro lugar, ele afirma que o DNA de um único espermatozoide possui 37,5 MB de informação. Não sei como ele chegou a esse número, mas um cálculo bem simples nos mostra que o número é bem maior. Um lote haploide de cromossomos, exatamente o que temos num espermatozoide, possui 23 cromossomos, cujos DNAs, somados (desconsiderando as diferenças entre o cromossomo X e o cromossomo Y), possuem 3.200.000.000 de pares de bases. Cada par de bases corresponde a 2 bits: há 4 bases, A, C, G e T, e podemos escrevê-las em binário como 00, 01, 10 ou 11. Portanto, considerando bytes de 8 bits, basta dividirmos 3.200.000.000 por 4 para termos como resultado que o DNA de um lote haploide corresponde a 800MB de dados. Aliás, eu já havia feito um pôster sobre isso (veja aqui) recentemente. Em seguida, o texto da imagem semi-subviral diz que uma ejaculação representa uma transferência de informações correspondente a 1.587GB em 3 segundos (e, logo abaixo, faz uma brincadeira com as velocidades do 4G). Mas, se dividirmos 1.587.000MB por 37,5MB, vamos chegar ao valor de 42.320 espermatozoides por ejaculação. Esse rapaz está com uma oligospermia severa, uma vez que o número normal é de 500.000.000 de espermatozoides por ejaculação. Mas o principal erro não é nenhum desses.

O principal erro é confundir informação com dado. Não são a mesma coisa, apesar de frequentemente tratarmos os dois termos como sinônimos. E qual seria a diferença? Informação é um dado com significado. Esse texto que você está lendo agora, neste exato segundo, é uma série de dados (a sequência de letras) com um significado. Contudo, considere a seguinte sequência, que eu irei criar batendo desvairadamente no meu teclado: “lkjapokjrgfwdycbzçlkvpwojjgwavcxpputyggweif”. Há dados aqui, mas que não significam coisa alguma. Um outro exemplo bem mais interessante e útil é pôr o dial do seu rádio entre uma estação e outra, captando apenas chiados (o termo técnico para esses chiados é ruído). Grave esses chiados em um arquivo digital e salve-o no seu HD. Digamos que você tenha, ao final do processo, um arquivo MP3 com 100MB de tamanho. Você tem 100MB de dados, mas não 100MB de informações. Da mesma forma, em relação ao pôster semi-subviral, um espermatozoide humano tem 800MB de dados, mas a quantidade de informação é bem menor que isso, talvez nem sequer 2% desse número.

Há vários outros termos que tomamos por sinônimos, mas que não são. Neste momento você já percebeu, caso não tenha ignorado as letras garrafais que compõem o título desta presente nota, que eu irei falar de Abiogênese e Geração Espontânea. Você acertou. Trata-se de dois termos que, de maneira quase ubíqua, são tratados como sinônimos (no Brasil, pelo menos, pois até onde pude observar, na língua inglesa, eles têm significados diferentes). Eu mesmo, desde quando comecei a dar aulas, há mais de 20 anos, sempre os usei como sinônimos perfeitamente intercambiáveis — até descobrir que não são.

Mas, afinal, qual a diferença?

A primeira delas é que a abiogênese é um fato científico, real, que ocorreu nesse planeta, enquanto que a geração espontânea é um conceito místico equivocado e plenamente desacreditado há mais de 150 anos. Vamos às explicações.

A abiogênese, também chamada de biopoiese, é o processo pelo qual sistemas vivos surgem a partir de sistemas não vivos, pela modificação e evolução dos compostos (orgânicos, em sua maioria) presentes naquele sistema. Em outras palavras, abiogênese é o termo que usamos para designar a origem da vida em um planeta ou satélite planetário, a partir de uma situação prévia onde não houvesse vida. É um processo natural que, pelo que sabemos, ocorreu com certeza em pelo menos 1 planeta (o nosso, há aproximadamente 4 bilhões de anos). A hipótese de Oparin-Haldane, o experimento de Miller, o “mundo do RNA”, entre outras, são hipóteses e experimentos bem conhecidos dos estudantes e professores do Ensino Médio, e que tentam explicar em maiores ou menores detalhes como se deu essa abiogênese.

Por outro lado, a geração espontânea, que já foi a opinião ortodoxa na Roma e Grécia clássica, é vista hoje em dia como uma curiosa crendice do passado, não fazendo mais sentido algum. Segundo a geração espontânea, organismos vivos podem surgir, espontaneamente, a partir do meio (como sapos que surgem da lama de um rio, pulgas que surgem da poeira ou larvas que surgem da carne podre) ou a partir de outros seres vivos (como árvores que produziam carneiros). Nesse último caso, o termo mais correto seria geração equívoca, apesar de muitos historiadores das ciências tratarem os termos geração espontânea e geração equívoca como sinônimos.

O algodoeiro, como imaginado por John Mandeville, em seu "As viagens de Sir John Mandeville", aprox. 1357: "Na Índia, havia uma maravilhosa árvore que produzia pequenos carneiros nas extremidades de seus galhos". Um bom exemplo de geração espontânea, ou melhor, de geração equívoca (Fonte: Wikipedia).

O algodoeiro, como imaginado por John Mandeville, em seu “As viagens de Sir John Mandeville”, aprox. 1357: “Na Índia, havia uma maravilhosa árvore que produzia pequenos carneiros nas extremidades de seus galhos”. Um bom exemplo de geração espontânea, ou melhor, de geração equívoca (Fonte: Wikipedia).

Apesar de ser uma possível explicação para a origem da vida, os defensores da geração espontânea, de Aristóteles a Pouchet, não a relegavam ao passado. Pelo contrário, eles alegavam que ela ocorria continuamente, ainda nos dias de hoje. Bem, o resto da história já é bastante conhecido por todos, e eu não preciso me alongar muito aqui: o conceito de geração espontânea foi sofrendo sucessivos golpes desde o Renascimento, até receber sua pá de cal das mãos de Pasteur, em 1859.

E, afinal de contas, como resolver esse imbróglio? Em minha opinião, ele não será resolvido: uma vez que os termos estão bem consolidados (no Brasil, convém repetir) como sinônimos, vai ser muito difícil ir contra a corrente — em termos evolutivos, poderia dizer que o professor que tentasse ensiná-los corretamente estaria indo contra uma Estratégia Evolutivamente Estável. É mais ou menos como o termo vídeo cassete, que apesar de se referir à fita onde era gravado o filme, acabou sendo usado para se referir ao aparelho onde você inseria a fita. E, depois que a coisa se consolida, não muda mais.

10 comentários sobre “Abiogênese versus Geração Espontânea

  1. Vou dar a minha opinião como professor em um curso de Licenciatura em Biologia…

    Vejo muitos alunos em minhas aulas ainda utilizando conceitos errôneos oriundos do ensino médio. Mesmo alunos dos últimos semestres. A questão entre Biogênese, Abiogênese e Geração Espontânea foi um dos temas que já tive que discutir em meio a uma aula sobre outro assunto, mas que uma vez surgido o questionamento, não seria sensato ignorá-lo.

    O maior problema é que muitos desses meus alunos (e isso é fato) não têm costume de ler livros de divulgação, notícias atuais ou mesmo blogs como este, de onde pode-se obter informações mais precisas e recentes sobre os mais diversos temas. Já ficou óbvio para mim a carência que isso tem causado aos alunos. E estes, por não achar tais fontes de informação importantes, acabam ignorando os temas mais recentes e “correções” de vários desses conceitos.

    Por fim, muitos desses alunos (se já não o são) serão professores e, talvez por não serem “desafiados”, não terão preocupação em se renovar e vão copiar os mesmo equívocos (e manias) dos seus antigos professores. Isso numa área de ciências é algo preocupante, devido a dinâmica e geração de conhecimento constante nessa área.

    E por aí vai…

    • É isso mesmo…
      E eu, como sou professor do ensino médio, ainda possuo um problema adicional, pelo qual você não passa: o vestibular! Se o vestibular cobrar que abiogênese é a mesma coisa que geração espontânea (e a esmagadora maioria considera assim), os professores, praticamente reféns dos vestibulares, têm que ensinar o errado. Quem ensinar o correto pode acabar “prejudicando” o aluno e, no fim das contas, prejudicar a si mesmo.
      Abraço,

  2. Olá, Gerardo! Bem, em se tratando do seu blog, não posso dizer que me surpreendeu: a excelência já é por mim esperada! Ao ler a postagem, fiquei extremamente contagiado: muito rico e criativo! Parabéns!

    Você me ajudou a identificar o problema: exatamente a falta da distinção entre “geração espontânea” (e confesso que não conhecia o “geração equívoca”!) e abiogênese é um dos fatores que torna o tema “origem da vida” confuso aos alunos! Você enfiou o dedo na ferida!

    Gostei muito também do tópico sobre as informações, os dados e os espermatozoides! Entretanto, deixarei minha mente fluir por aí (não me culpe, foi você quem a atiçou, hehehe!): talvez a informação contida em um desses gametas seja superior a uma pequena parcela de 800 MB, já que pode haver muita informação epigenética envolvida! Mesmo se especificássemos que se trata de informação genética, ainda assim parcela poderia ser maior, pois as regiões não codificantes podem ter papel essencial na regulação da expressão pré e pós-zigótica, não?

    Finalmente, identifiquei-me demais com a sua resposta ao comentário (muito interessante, também, por sinal) do Célio: exigem de nós não que os alunos aprendam biologia, mas que passem no vestibular. Com mil demônios, para onde estamos indo…? Isso também me incomoda demais. Ultimamente, o que eu tenho feito é apresentar os conceitos (buscando uma transposição sem erros!) da maneira mais próxima à ciência contemporânea que eu consigo e, com exercícios, chamar atenção para a incompetência dos vestibulares. Tenho me esforçado para que eles consigam dizer aos vestibulares: “a resposta que você espera é ESTA, mas ela é inadequada por ISSO, ISSO e AQUILO”. Árdua missão… Ah, e a propósito… Lembra-se da FUVEST-2014 que você mesmo comentou há alguns meses? Pois então. Questionei sobre isso junto a um amigo meu, docente lá do IBUSP, e ele disse que os docentes do departamento de zoologia estavam indignados, e mesmo que eles haviam entrado com um recurso junto à FUVEST para anular pelo menos uma das questões, mas sem êxito… Resta saber, então, quem diabos produz essas questões que ditam em grande parte o rumo do ensino médio brasileiro…

    Forte abraço!
    P.

    • Oi, Peterson,
      esse livro aqui (Annals of the History and Philosophy of Biology) tem um capítulo só sobre geração equívoca e geração espontânea, olha só:
      http://books.google.com.br/books?id=byJk8Ea0WSQC&lpg=PA79&dq=equivocal%20generation&hl=pt-BR&pg=PA79#v=onepage&q=equivocal%20generation&f=false

      800MB é o limite máximo de dados do DNA de um espermatozoide, pois aqui já estou considerando o DNA inteiro, tanto as regiões codificantes como as não codificantes. É isso que tentei explicar no texto, são 800MB de dados, não de informações. Se quisermos considerar apenas as informações (ou seja, só as regiões codificantes), mesmo incluindo as informações epigenéticas, não deve chegar nem a 15MB.
      Sobre esse problema dos vestibulares e dos recursos, a coisa é mais complicada do que parece. Já vi um amigo meu com uma carta do prof. Luiz Junqueira (naquela época não existia e-mail), que dizia que uma certa questão de histologia não tinha nenhuma opção correta, não conseguir anular a questão. Anos depois eu mesmo, com um e-mail do prof. Amorim (eu havia enviado a questão para ele, que gentilmente analisou-a) debaixo do braço, também dizendo que não havia nenhuma opção correta na questão, não consegui anulá-la.
      Um tempo depois, eu estava conversando com o presidente da comissão coordenadora do vestibular, um cara muito gente boa por sinal, e perguntei pra ele “por que é que uma questão diz que 2+2=7, a gente entra com recurso mostrando que 2+2=4, protocola as opiniões dos maiores especialistas do Brasil, e o recurso nunca é aceito?”. E ele me respondeu: “quando alguém entra com o recurso, a comissão envia o recurso para o professor elaborador da questão, e ele tem um prazo pra dizer pra gente se o recurso será aceito ou não”
      Ou seja, não há nenhuma comissão, nenhum grupo. Só o professor elaborador. Ele, sozinho, o mesmo cara que cometeu a parvoíce original! Não sei como é na FUVEST, mas em várias universidades é assim.
      Abraço,

      • Ah, Gerardo, obrigado pelo esclarecimento! De fato, eu havia entendido (e concordado) com sua clara colocação sobre o par dado/informação! Mas não sei porque (pré-concepção minha!), eu achava que com as informações epigenéticas esse número de 800 MB deveria explodir.

        E quanto à postura dos vestibulares, é algo lamentável… Talvez ainda mais lamentável seja que as instituições de ensino curvem-se a eles em busca de mercado… E aí, claro, entra sua ideia sobre a EEE: infelizmente, nesse caso, é muito mais vantajoso ser “trapaceiro”, ensinando sabe-se-lá-o-quê para que se obtenha um bom índice de aprovação.

        Abraço!

  3. Gerardo, a ideia do Wittegenstein tardio chamado ‘jogo de linguagem’ pode ser um modo de entender o porque alguns termos que sao culturalmente fixados nao tem mais volta…

  4. Prof. Gerardo,

    Li, recentemente, uma observação crítica à teoria da evolução de Darwin feita pelo filósofo esloveno Zizek. O livro em questão atribuía ao filósofo as seguintes afirmações:

    “Darwin acreditava que os inúmeros projetos da Natureza estavam perfeitamente afinados para fazer o que quer que seja que estivessem destinados a fazer – capacitar animais a ver, alimentar-se e a se nutrir do sol”.  E retruca: “Não! A Natureza emenda e improvisa… Grandes catástrofes sempre acompanham sucessos limitados. Assim, a evolução é composta de uma série de catástrofes e desastres, e evoluções fracassadas fazem parte da nossa história”. E pergunta: se a evolução é também perfeitamente projetada, como é que 90% do genoma humano é DNA sem valor?”

    Fiquei bastante surpreso com essas observações. Até onde entendo me pareceram levianas e equivocadas em relação ao verdadeiro pensamento de Darwin. E que poderiam ser direcionadas, provavelmente, aos defensores de crendices tipo “design inteligente”, etc. Mas, como não sou estudioso de biologia evolutiva, fiquei curioso de saber a sua opinião sobre essas afirmações, feitas por um filósofo tão em moda atualmente.

    Um grande abraço,

    Regis Ethur

     

    • Olá, Regis,
      Eu procurei brevemente aqui na internet algum texto desse filósofo sobre Darwin e não achei nada… fiz isso porque prefiro ouvir suas ideias dele próprio a ter que criticá-lo por algo que um livro afirma que ele disse, e o próprio livro pode ter modificado as palavras dele. mas vamos lá:
      Se ele de fato disse isso, ele se enganou. Esse não era o pensamento de Darwin; talvez esteja mais próximo ao modo de pensar de Wallace, mas ainda assim com ressalvas.
      Porém, mesmo supondo que Darwin acreditasse nesse afinamento perfeito – e ele não acreditava – isso não tem importância nenhuma: a ciência progride, e, contrariamente à filosofia, na ciência não existem autoridades. Se uma teoria se mostrar errada, não importa quem a tenha enunciado, de Galileu a Einstein, a teoria é deposta e substituída. Hoje em dia, a biologia evolutiva explica perfeitamente os becos sem saída evolutivos, as características maladaptativas, os desastres (eu mesmo já escrevi sobre isso várias vezes aqui no blog), independentemente de Darwin ter acreditado ou não num afinamento perfeito.
      Além disso, a gente percebe logo quando a pessoa não tem intimidade com a biologia: primeiro, não é 90% do genoma que é não codificante, é 98,5%; segundo, “não codificante” não é sinônimo de sem valor, muito pelo contrário. Há inúmeras hipóteses evolutivas que explicam o surgimento do DNA não codificante.
      Abraço,

  5. Bom e rigoroso esclarecimento sobre a diferença entre os conceitos de geração espontânea e abiogênese, mas forçada a enunciação destúltima como fato científico real.

  6. Esclarecedora explicação de conceitos. Geração equívoca: sem base lógica, e daí difícil e mesmo impossível de ser considerada nos estudos biológicos; geração espontânea e abiogênese: embora conceito mais popular um e de aspecto mais científico o outro, ambos sugerem em última análise o mesmo improbabilíssimo fato: a vida a partir da não-vida.

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