Evolução: testável e falseável

Eu tive um professor de filosofia bastante competente, do qual eu e boa parte da turma gostávamos muito. Na verdade, ele nos deu aulas em uma cadeira intitulada introdução à filosofia, que possuía apenas um terço da carga horária da cadeira de filosofia que meu curso originalmente possuía. Não irei citar seu nome aqui por uma questão elementar de privacidade — se ele ler esse post, o que é altamente improvável, ele vai saber que falo dele; para os demais leitores do blog, o que interessa é a história, e não os personagens. Oriundo das ciências humanas, ele tinha uma visão epistemológica um pouco diferente da nossa, criados dentro das ciências naturais, e seguia uma linha popperiana. Devo confessar (confissões são muito perigosas na internet atual, e portanto confessarei apenas o necessário) que nunca li Popper, o que conheço das ideias dele é o que li de terceiros, ou seja, o que outros autores escreveram sobre Popper. Já tive o prazer de ler Kuhn e, se Popper for uma leitura tão agradável quanto Kuhn, definitivamente vale a pena.

Nosso professor, dentro de sua abordagem popperiana, dava a devida importância ao problema da indução e à questão da falseabilidade. Para quem não sabe o que é isso, convém uma pequena explicação (eu sei que o Wikipédia está logo ali, gratuito e acessível, mas não me custa nada dar uma ajudinha). Um enunciado é falseável se for possível, ou mesmo permitido, mostrar que ele é falso. Por exemplo, “todas as ovelhas são brancas” é um enunciado falseável: basta achar uma ovelha preta (ou as famosas ovelhas cor de rosa da Nova Zelândia) para mostrar que o enunciado está falso.

É fundamental, contudo, esclarecer duas coisas:

  1. Falseável não significa falso nem falsificado. Falseável significa “que pode ser posto a teste”, “que pode ser testado”. Um enunciado, apesar de falseável, pode nunca ser falsificado, e sua validade pode se manter por séculos. Por exemplo, “os mamíferos têm vértebras” é um enunciado falseável (basta achar um mamífero sem vértebras), mas que muito provavelmente nunca vai ser invalidado.
  2. Nem todo enunciado verdadeiro e correto tem que ser falseável. “O sal é salgado”, por exemplo, é um enunciado não falseável e verdadeiro (como toda tautologia, por sinal)

Para Popper, a ciência é constituída de hipóteses (enunciados) falseáveis. Enunciados não falseáveis podem ser construídos e elaborados, e podem inclusive serem verdadeiros, não há problema algum… porém, eles simplesmente não seriam científicos. Não constituem o que chamamos de ciência. Enunciados científicos devem ser falseáveis.

Bem, um belo dia, esse nosso professor comentou que a evolução (o mais correto seria dizer “a biologia evolutiva” no lugar de “evolução”. Para maiores esclarecimentos, veja a aba Por que biologia evolutiva, no topo da página) não era uma teoria ou uma hipótese científica, segundo a abordagem popperiana, porque a evolução não seria falseável.

Como ele possuía um grande conhecimento de filosofia e de epistemologia, mas não de biologia evolutiva propriamente falando, o seu pequeno erro é compreensível e justificável. Trata-se de um erro relativamente comum, que pode ser facilmente esclarecido. Muitos de nós, mesmo no ambiente acadêmico, costumamos esquecer que a biologia evolutiva é uma ciência e que, como as outras ciências, trabalha com hipóteses, com análises estatísticas e até mesmo com experimentos. E, o mais importante aqui, cujos enunciados são falseáveis.

Antes de tudo, convém definirmos resumidamente o que é evolução. Podemos definir evolução como a modificação da constituição genética de uma população, ao longo do tempo. Se você é chegado numa definição macroevolutiva, podemos dizer que evolução é a mudança na constituição de espécies do planeta, ao longo do tempo. Ambas vão servir ao meu propósito. Por quê? Porque ambas fazem predições, e essas predições podem ser postas a teste.

Para mostrar que a evolução não existe, para falsificar os enunciados da biologia evolutiva, basta mostrar que a constituição genética de todas as populações têm sido a mesma, em toda e qualquer fatia do tempo considerada. Apenas isso. Do ponto de vista macroevolutivo, basta mostrar que todas as espécies de animais, plantas, fungos, bactérias, protozoários e algas (sem esquecer dos vírus e, por que não, dos príons) existiram exatamente do jeito que são hoje, em toda e qualquer era, período ou época geológica considerada.

No tumblr, acabei usando "evolução" como sinônimo de "biologia evolutiva".

No tumblr, acabei usando “evolução” como sinônimo de “biologia evolutiva”.

Os enunciados da biologia evolutiva são falsificáveis, e a biologia evolutiva é claramente uma ciência — dentro do ponto de vista popperiano. Convém esclarecermos isso, de uma vez por todas, para em seguida deixar isso para lá e nos preocuparmos com coisas mais importantes.

Questionar, por à prova, tentar falsificar, ser cético, tudo isso é importante para a atividade científica. A aceitação de enunciados sem questionamento, ou cujo questionamento sequer é permitido, não constitui ciência. Porém, lembre-se: não aceitar as evidências que são apresentadas é algo menos científico ainda.

6 comentários sobre “Evolução: testável e falseável

  1. Que agradável texto! Primeiramente porque nos remete à sensação de ter tido um mestre marcante de filosofia em nossas vidas. Se filosofar é, sob muitos aspectos, viver, essas pessoas nos ensinaram pelo menos um bocado sobre a vida.

    Em segundo lugar, gostei da publicação porque me permitiu refletir de novo sobre a epistemologia da biologia evolutiva. Ao contrário de você, Gerardo, nunca tive contato direto com as obras de Kuhn, mas sim com algumas de Popper. Devo dizer que todo o arcabouço epistemológico formal (i.e., em salas de aula) do meu aprendizado em sistemática foi popperiano (e você sabe, a Sistemática Filogenética ainda se apóia amplamente em Popper). Embora eu tenha começado só mais tarde a me indispor em relação à visão popperiana (pelo menos em alguns aspectos), indo buscar respostas em Lakatos, Feyerabend e van Fraasen, gostei como você expôs o argumento, lembrando regularmente de que ele se desenrolava dentro de um plano popperiano (impedindo que um olhar desatento entenda a ciência como uma janela para a verdade ubíqua).

    Em todo caso, muitas coisas ainda me atraem no ponto de vista popperiano, portanto não me enveredarei em discussões acerca de seu mérito. Concordo com o que você escreveu, e também vejo muitos aspectos das teorias evolutivas (considerando-as desde o transformacionismo de Lamarck) como testáveis. Para ajudar naquilo que quero dizer, indico o site abaixo (que mostra, inclusive, as mudanças de opinião de Popper em relação à teoria da evolução darwinista). Apenas peço que desconsidere a falta do escritor, que também parece estar encharcado de ideais transformacionistas, como ele deixa transparecer no antepenúltimo parágrafo. Como a análise, porém, se dirige mais diretamente à biologia evolutiva (como você gosta de dizer!) do que propriamente ao darwinismo em si, permanece válido ao defender que Popper aceita os estudos evolutivos como práticas científicas testáveis e, portanto, legítimas:
    http://ncse.com/cej/6/2/what-did-karl-popper-really-say-evolution

    Um forte abraço!

  2. Pingback: Neil deGrasse Tyson: um acadêmico aberto ao público, falando sobre o tempo

  3. Acho curioso esse amor religioso pela evolução. Se trata de uma tese, quiça uma hipótese, que tenta explicar racionalmente uma coletânea de evidências, a saber, a diversidade de espécies. Ela é inerente ao mundo do empirismo o qual permite a testabilidade. Utilizar de sofismas incluindo a própria evidência (diversidade de espécies) na proposição e a utilizando com sinônimo (evolução) chega a ser infantil: “A evolução, como toda e qualquer teoria científica, é plenamente falseável. Para isso, basta mostrar que a variedade de espécies não varia (kkkkkkk)” “Logo, a variedade de espécies é a evolução e vice-versa (kkkkkk).

    A verdade é que as ciências biológicas se perderam em seus dogmas e preconceitos, assim como ficamos mais de mil anos amarrados a metafísica aristotélica.

    O ponto crucial que deveria ser respondido é que todos os seres vivos representam uma grande biblioteca genética e que fenômenos como diferenciação, introns, exons, transformação, transdução e conjugação pressupõe a pré-existência de um organismo detentor de toda essa carga (biblioteca). Especialmente o processo de diferenciação é a evidência mais forte nesse sentido.

    Outra pergunta que deveria ser respondida é o porquê que desde o início na vida até hoje não houve o surgimento de novas estruturas de conjuntos de nucleotídeos que extrapolam o RNA e o DNA originando novas estruturas de vida que ultrapassem, inclusive, o esquema proteico.

    Por fim ressalto que não considero o criacionismo e nem o design inteligente como ciências, mas também considero que a Teoria da Evolução foi muito mais além do que ela originalmente se propunha, virando uma espécie de marxismo das ciências biológicas. Assim como Materialismo Histórico Dialético não é sinônimo de História, Evolução não é sinônimo de Diversidade de Espécies.

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