A Rubisco e a tendência à perfeição

Os efeitos da scala naturae sobre o modo de pensarmos o processo evolutivo são diversos e maléficos: quase sempre me vem à mente o famoso jargão “o homem veio do macaco”. Nenhum biólogo evolucionista competente afirmaria tal coisa, nem no sentido restrito da palavra macaco, nem no sentido mais geral, seja isso o que for. Tomando o termo “macaco” como algo que define os primatas de Gênero Macaca, por exemplo, gosto sempre de repetir pros meus alunos que o homem não veio do macaco, e que o inverso também não é verdadeiro, ou seja, que o macaco não veio do homem: podemos afirmar apenas que ambos compartilham um ancestral comum.

Nesta forma de compreender o processo evolutivo, o homem e seus ancestrais tomaram um caminho, enquanto o macaco e seus ancestrais tomaram outro. Porém, o pensamento clássico a esse respeito, quando a scala naturae exercia um papel importantíssimo na fundamentação teórica, leva a conclusões bem diferentes. Para exemplificarmos, abandonemos o macaco e pensemos numa espécie bem mais aparentada com o ser humano, o chimpanzé. É bem comum (eu, pelo menos, fico sempre atento a esses deslizes em livros, documentários etc…) ouvirmos que “o chimpanzé ainda não anda de forma bípede”, ou que “o chimpanzé ainda não desenvolveu a linguagem falada”, entre outras coisas. O que esse “ainda” quer dizer? O chimpanzé não é um ancestral do ser humano; o chimpanzé não é um homem menos evoluído, termo que por sinal não significa coisa alguma. O chimpanzé e o homem descendem de um ancestral comum, apenas isso. Enquanto a linhagem que originou os humanos desenvolveu a linguagem falada, por necessidades e vicissitudes próprias, a linhagem que deu origem aos chimpanzés se “preocupou” com outros problemas (e soluções) evolutivos. Os chimpanzés não têm que desenvolver a linguagem falada, e muito provavelmente nunca o farão; ressalto que os chimpanzés não são os ancestrais dos seres humanos, e que também os seres humanos não são os ancestrais dos chimpanzés.

Assim, sempre que assisto um programa no Discovery ou na National Geographic, ou leio um livro de biologia, ou simplesmente bato papo onde quer que seja, fico atento para esses efeitos, alguns deles bastante sutis e quase imperceptíveis, da scala naturae em nossa forma de encarar o processo evolutivo.

O próximo exemplo é um pouco mais complexo porque traz uma outra noção clássica associada à scala naturae, que já discuti muito brevemente num tópico passado, que é a tendência à perfeição. Trata-se da dupla atividade catalítica da enzima Ribulose-1,5-bifosfato-carboxilase-oxigenase, ou simplesmente Rubisco. A Rubisco é uma das enzimas mais importantes do planeta, pois catalisa a adição de dióxido de carbono à ribulose-1,5-bifosfato no ciclo de Calvin, produzindo 3-fosfoglicerato. Para quem ainda não lembrou, estamos falando da enzima que inicialmente fixa o gás carbônico na fotossíntese. Acontece que, dependendo das concentrações de oxigênio molecular e de gás carbônico, a Rubisco pode adicionar tanto o último como o primeiro à ribulose; a reação com o oxigênio molecular, indesejável, leva à produção de 3-fosfoglicerato e fosfoglicolato. Em resumo, trata-se de um processo (denominado fotorrespiração) prejudicial energeticamente para o organismo fotossintetizante.

Modelo em pdb (Protein Data Bank) da enzima Rubisco

Modelo em pdb (Protein Data Bank) da enzima Rubisco

A justificativa clássica para essa estranha propriedade da rubisco é que essa enzima teria surgido numa época em que praticamente não havia oxigênio molecular livre na atmosfera. Segundo este ponto de vista, a rubisco foi moldada seletivamente para um ambiente bem diferente do atual, onde as concentrações de dióxido de carbono eram bem maiores, e a atividade de oxigenase da rubisco não tinha importância evolutiva. Assim, toda a estrutura fisiológica das plantas estava “baseada” numa enzima que, a partir do carbonífero, não encontrava mais uma situação ideal, e passou a apresentar a desgastante atividade oxigenase.

Esse ponto de vista não parece mais adequado. Em primeiro lugar, sabe-se hoje em dia que há diversas formas distintas de rubisco, com diferentes atividades oxigenase. Há formas microbianas da rubisco bem mais sensíveis ao oxigênio molecular que a rubisco encontrada nas plantas, o que mostra que essa última já seria uma forma bastante eficaz no sentido de utilizar o gás carbônico como substrato. Em segundo lugar, 300 ou 350 milhões de anos (do carbonífero até o presente) é um tempo enorme evolutivamente falando: foi capaz de fazer surgir todo o mirabolante metabolismo C4 e CAM; por que não seria capaz de criar uma variante da rubisco com atividade oxigenase reduzida?

Além disso, há atualmente uma tendência em se encarar a fotorrespiração como uma atividade importante para a planta! Assim, o consumo de NADP reduzido e de ATP neste processo seria uma válvula de escape, para prevenir a fotooxidação. Segundo essa linha de análise, a rubisco não possui uma menor atividade de oxigenase porque, para a planta, essa própria atividade, que nós geralmente encaramos como um “defeito” da rubisco, seria seletivamente mantida.

Independentemente de qual o ponto de vista correto, creio que uma explicação complementar fundamental pode ser achada no livro de biologia celular do Lodish, “Molecular Cell Biology” (não confundir com “Molecular Biology of the Cell”), 5ª edição, página 345, lê-se o seguinte: “Photorespiration is wasteful to the energy economy of the plant: it consumes ATP and O2, and it generates CO2. It is surprising, therefore, that all known rubiscos catalyze photorespiration. Probably the necessary structure of the active site of rubisco precluded evolution of an enzyme that does not catalyze photorespiration.” (A fotorrespiração é dispendiosa para a economia energética da planta: ela consome ATP e O2 e produz CO2. É surpreendente, portanto, que todas as rubiscos conhecidas catalisem a fotorrespiração. Provavelmente a estrutura necessária para o sítio ativo da rubisco impede a evolução de uma forma da enzima que não catalise a fotorrespiração). Essa interpretação é corroborada pelo diligente Douglas Futuyma, que gentilmente me respondeu um email sobre esta propriedade da rubisco: “Usually there are trade-offs, so that a characteristic (whether it be an enzyme or an anatomical feature) is not ideally suited for the one function we are aware of – often because it must perform several functions, or a single function under different conditions that would require differrent optimal properties.”

Contudo, é comum ouvirmos que a rubisco atualmente existente é uma forma imperfeita da enzima, e que provavelmente estamos assistindo o processo evolutivo, que nos levará a uma variante enzimática que não apresenta atividade oxigenase, evitando-se assim a ocorrência da fotorrespiração. Eu, pelo menos, já ouvi essa interpretação algumas vezes.

Acho esse tipo de pensamento inadequado em biologia evolutiva. Primeiramente, vejamos: a atividade catalítica da rubisco é tal que tanto o dióxido de carbono como o oxigênio molecular agem como reagentes, e eventuais modificações na estrutura tridimensional de seu sítio ativo poderiam contornar o problema, eliminando a atividade oxigenase da rubisco. Porém, por que, mesmo após milhões de anos da existência desta enzima em mais de 400 mil espécies, tal variante não surgiu? Estou aqui levando a coisa pro lado estatístico, pois tal variante não tem obrigação de surgir. Porém, as chances foram muito numerosas, dado o intervalo de tempo e o número de organismos envolvidos.

Em segundo lugar, porque as plantas desenvolveram todo o complexo mecanismo da fotossíntese C4, com a anatomia kranz, ou ainda o mecanismo CAM de fixação do carbono, ambos muito mais complexos evolutivamente falando, quando seria bem mais simples desenvolver uma Rubisco que não tivesse a atividade oxigenase?

Meu ponto de vista, enfim, é que não podemos imputar uma tendência à perfeição, quando nos deparamos com uma estrutura que “poderia” ser melhor. De fato, tais estruturas podem modificar-se evolutivamente falando, mas isso não é uma obrigação, muito menos o resultado de uma força mística interna.

Para finalizar, há uma ultima questão que gostaria de trazer à tona: o que se quer dizer quando se fala que a Rubisco é uma forma intermediária para uma variante futura, e que estamos “assistindo” o processo evolutivo? Afinal, não estamos assistindo o processo evolutivo em todos os seres existentes? Não são todas as estruturas atuais, mesmo as que julgamos mais perfeitas e acabadas, apenas um instantâneo do processo evolutivo, uma etapa intermediária entre o que foi e o que será?

8 comentários sobre “A Rubisco e a tendência à perfeição

  1. A tendência do ser humano em atribuir sentido às coisas…

    Por que não surgiu uma rubisco que não apresente este mal-hábito de tratar o oxigênio como se fosse gás carbônico?

    Para onde aponta a evolução?

    Seria melhor para a planta ter uma rubisco “perfeita” segundo esse parâmetro, ou tal rubisco diferente poderia trazer para o vegetal outras implicações não tão “desejáveis”?

    Enfim, só reforçando aqui algo que já fica bem claro no livro.

  2. “O chimpanzé e o homem descendem de um ancestral comum, apenas isso. Enquanto a linhagem que originou os humanos desenvolveu a linguagem falada, por necessidades e vicissitudes próprias, a linhagem que deu origem aos chimpanzés se “preocupou” com outros problemas (e soluções) evolutivos”.

    A palavra necessidade nesse contexto, transmite uma ideia de que o homem precisou falar para sobreviver. Ou seja, o ambiente forcou o homem a falar para a sua sobrevivencia.

    • concordo com você, a palavra necessidade neste caso é infeliz, não por transmitir a idéia de que o homem precisou falar para sobreviver, mas principalmente por sugerir que tal modificação evolutiva era obrigatória. fica melhor, então, apenas “por vicissitudes próprias”…
      obrigado.

  3. Prof Gerardo, creio que o uso da expressão “atividade ‘oxidativa'” no seu texto está equivocada. Neste caso, penso que o mais adequado seria “atividade oxigenase”, uma vez que oxidação trata-se de reação com perda de elétron.

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