Mais sobre probabilidades: a questão do incesto

Num tópico anterior sobre probabilidades aleguei que a percepção correta das probabilidades associadas a determinados eventos e o estabelecimento (quando existem) de correlações entre eventos dados não é algo intuitivo entre os seres humanos, e provavelmente nem para os demais primatas.

Faz pouco tempo que me rendi a esse fenômeno moderno que são os blogs, e devo confessar que, apesar dos vários aspectos negativos dessa nova tecnologia, há algumas vantagens fantásticas. Uma delas é a possibilidade de receber, quase que imediatamente, as impressões e as opiniões do leitor (o famoso e desnecessário anglicismo “feedback”). Claro que isso também era (e continua sendo) possível com um livro impresso, mas há uma enorme diferença entre escrever, envelopar e postar uma carta para o autor, e encontrar logo após a leitura de um texto um convidativo “deixe seu comentário”…

Assim sendo, nesse tópico anterior sobre probabilidades entrei num diálogo com um colega, em que ele argumentava que a percepção das probabilidades é intuitiva, e eu mantinha minha posição. Revi alguns conceitos, e penso que há outra forma de defender minha suposição. Explaná-la é o fito dessa breve nota.

Nós conseguimos determinar probabilidades e estabelecer relações através de um processo laborioso de coleta de dados, seguido pelo não menos complexo trabalho de análise estatística desses dados coletados. Essa atividade de análise de dados é um processo científico, construído por décadas e décadas através do acúmulo de conhecimentos sobre esse ramo das ciências e da matemática. Meu ponto de vista é que a mente de um mamífero (vou aqui deliberadamente trazer a análise para um grupo mais inclusivo…) como a do ser humano não é capaz, intuitivamente, de perceber essa montanha de dados, de construir estatísticas descritivas e de ponderar probabilidades. Não estou chamando os mamíferos de burros, um apaixonado pela etologia que sou jamais faria isso. O que quero dizer é que os mamíferos, ou especificamente os primatas, não são intuitivamente capazes de estabelecer probabilidades, e que nem precisam disso: haverá alguma forma mais simples e ao mesmo tempo mais eficaz de se analisar uma montanha gigantesca de dados, num período de tempo indefinido, e se estabelecer correlações? Penso que sim, e a resposta pode ser bastante simples: o processo de seleção.

Para explicar e defender minha suposição, preciso inicialmente estabelecer o conceito de módulo comportamental, que seria uma estrutura etológica geneticamente determinada. Em outras palavras, um determinado comportamento geneticamente modulado, que seja hereditário e genético (leia sobre a distinção desses conceitos neste post). Com isso em vista, podemos deixar que o processo evolutivo estabeleça relações corretas e adequadas. Vamos ilustrar isso:

Suponha que um determinado evento A esteja associado a um determinado evento B (nesse caso, estou pensando em uma correlação positiva), como por exemplo o cheiro ruim de um fruto estragado estar associado a infecções bacterianas (que foi um dos exemplos discutidos nos comentários do tópico original). Um primata poderia, com muito labor mental, perceber essa associação. Mas suponha o surgimento de um módulo comportamental X, que faz o animal evitar frutos com determinados cheiros. Perceba que, evolutivamente, esse módulo comportamental surge ao acaso, como também poderia surgir, por exemplo, um módulo comportamental que faz o animal evitar glicose. Contudo, enquanto esse último comportamento claramente prejudicaria o organismo, um módulo comportamental que fizesse o animal evitar frutos estragados seria vantajoso, mesmo que a relação entre o evento A e o evento B seja bastante tênue. O que estou alegando é que, mesmo que tenhamos um nível de significância baixíssimo (que o animal não poderia perceber intuitivamente), o número de cruzamentos é tão grande e o período de tempo é tão ilimitado que a presença do módulo comportamental X vai acabar se mostrando vantajosa, e sua freqüência irá aumentar na população, sendo eventualmente fixada (id est, todos os membros da população possuirão o módulo X). O processo seletivo se encarrega de fixar os módulos comportamentais que estabelecem correlações e probabilidades corretas. Não se trata aqui de defender que todo comportamento é geneticamente modulado, longe disso: todos os etólogos sabem o que são os comportamentos aprendidos, e que em mamíferos (como o ser humano) são de elevadíssima importância. Apenas de defender que noções estatísticas não precisam ser intuitivas, uma vez que podem ser estabelecidas por outra via, a da seleção de comportamentos.

edipo rei

O rei Édipo, símbolo clássico do incesto, é levado para o exílio por sua filha, Antígona. O baixo-relevo francês diz "Oedipe Roi". Escultura de Rudolph Tegner

Outro exemplo, desta vez um particularmente polêmico: a questão do incesto e da proibição da endogamia. É extremamente comum, uma “verdade” já cristalizada, ouvirmos que entre os mamíferos (e entre os humanos em particular) o incesto é evitado com o intuito de reduzir o grau de homozigose na prole, pois para alelos recessivos defeituosos ou LOF (Loss of Funcion) a homozigose pode ser letal. Contudo, essa explicação tão comum e tão propagada não está correta. A proibição do incesto entre os humanos não pode ser explicada pela observação de que casamentos endogâmicos aumentam a probabilidade de homozigoses letais por uma razão muito simples: a probabilidade relacionada é extremamente baixa, e a relação entre os dois eventos só surge quando analisamos estatisticamente uma grande quantidade de casamentos, tanto endogâmicos quanto não-endogâmicos. Para exemplificarmos com números, suponha que a chance de nascer uma criança com uma dada condição genética letal seja de 0,002 (os números reais são bem mais complicados, portanto quero frisar que esse é apenas um exercício mental), ou seja, 0,2%. Suponha que a endogamia, por exemplo o casamento entre irmãos ou entre mãe e filho, aumente esse número para 0,008. Temos portando uma probabilidade quadruplicada, o que é bastante significativo. Contudo, o número real (0,8%) é muito baixo para ter sido percebido pelos primeiros hominídeos, e a diferença de 0,002 para 0,008 é praticamente impossível de ser percebida intuitivamente. Podemos dizer que evitar a homozigose é a causa última da proibição do incesto, mas qual seria sua causa próxima? O que temos que procurar aqui é um mecanismo que reduza a endogamia; uma vez que esse mecanismo exista, a seleção tenderia a fixá-lo na população, pois a redução da homozigose nas proles é um aspecto vantajoso, mas como conseqüência do mecanismo. Portanto, como explicar a proibição da endogamia?

Há algumas hipóteses bastante conhecidas. Não quero aqui defender uma ou outra, na verdade isso não tem a menor importância para a nossa argumentação: qualquer que seja a hipótese correta, o que nos interessa é que a relação entre endogamia e filhotes com defeitos genéticos não é intuitivamente percebida. A hipótese mais famosa para a evitação da endogamia é o estabelecimento do complexo nuclear proposto por Freud, de fundamental importância na psicanálise. De forma geral (para quem quiser se aprofundar no tema, recomendo “Totem e Tabu”, Freud, 1913), o não do pai ou a autoridade paterna estabelece na criança, durante seu processo de castração, seu superego, e por conseqüência a criança (do sexo masculino) abandona seu objeto amoroso, que é sua mãe, bem como evita sexualmente outras fêmeas do núcleo familiar, como suas irmãs, para poder manter seu falo, e adentra logo em seguida em sua fase de latência. O conceito é complexo, mas de maneira simples o que temos aqui é um comportamento cultural (ou seja, hereditário sem ser genético) que impede que a criança sacie seus desejos sexuais dentro da família. O resultado disso, como já explicamos anteriormente, seria a redução da homozigose.

Outra possibilidade, bem diferente do que propõe Freud, é a estampagem sexual negativa, proposta por Westermarck. Nesse caso, teríamos um módulo comportamental (geneticamente determinado, portanto) entre mamíferos, e portanto entre seres humanos, que faz com que filhotes criados juntos nos períodos iniciais de suas vidas reconheçam-se e se passem a se desestimular sexualmente, ao atingir os períodos maduros de suas vidas. Ou seja, de acordo com o “efeito Westermarck”, os filhotes criados juntos aprendem a se evitar como parceiros sexuais, bem como os filhotes em relação ao pai e a mãe. Assim, o módulo comportamental determina que os semelhantes reconhecidos durante um determinado período de sua vida não poderão ser parceiros potenciais. Deve-se perceber que o comportamento é geneticamente determinado, mas não os objetos: por exemplo, um menino adotivo criado com outras crianças não vai desenvolver interesses sexuais por sua irmã de criação, mesmo que essa se torne posteriormente uma mulher encantadora. Apesar destas exceções, a conseqüência deste módulo comportamental seria a mesma do complexo de castração freudiano: reduzir o grau de homozigose nas gerações futuras.

Mais uma vez, não nos interessa aqui quem está correto, se Freud ou se Westermarck (além das várias outras hipóteses, que não citei). O que nos interessa é perceber que temos um comportamento cuja conseqüência é a redução da homozigose; porém, dizer que os humanos evitam o incesto porque sabem que a endogamia eleva as chances de deficiências genéticas me parece pura fantasia e pseudociência.

27 comentários sobre “Mais sobre probabilidades: a questão do incesto

  1. Seu blog vicia.
    Muitos assuntos que me intrigam encontro aqui, com um cruzamento tal de informações que leio os posts mesmo que os títulos não me despertem curiosidade.
    Informação de fonte confiável nunca é demais.

    *”chamando os mamíferos de burros” daria um ótimo post..

  2. Entre os antigos faraós, ao longo de centenas de gerações endogâmicas filhas das dinastias, acontecia de um deles nascer com alguma aberração notável.

    Alguns anos atrás, fui a uma exposição de réplicas de múmias que aconteceu no North Shopping. Lá, havia uma que apresentava a cabeça absurdamente proeminente.

    Tais aberrações, longe de serem vistas como deficiências, eram exaltadas como manifestações do divino.

    Post-scriptum: “Totem & Tabu” – recomendações ao quadrado! Valeu, Freud!

  3. Podemos dizer que evitar a homozigose é a causa última da proibição do incesto, mas qual seria sua causa próxima?

    Lévi-Strauss também refutou veementemente a hipótese de que os primeiros humanos pudessem perceber a relação entre a consangüinidade e a incidência de malformações, bem como a de Westermarck, que considerou mais uma consequência do tabu do incesto, do que a causa.

    Inspirando-se no estudo de Marcel Mauss – Ensaio sobre a Dádiva, Strauss desenvolveu a hipótese de que a renúncia às mulheres do bando teria sido consequência do “regime do produto escasso” (mulheres e comida) em que viviam os primeiros humanóides.

    Tratando-se de bandos nômades relativamente pequenos (15 a 20 indivíduos) com uma rígida divisão de trabalho entre homens e mulheres, onde eles caçavam e elas criavam filhos e coletavam frutas e sementes, é provável que na maioria dos bandos ocorresse uma desproporção entre homens e mulheres, agravada pela prática corrente da poligamia, onde o chefe eclipsava um grande numero de fêmeas. Resultava que nos bandos de maioria feminina houvesse escassez de carne (proteínas essenciais para a sobrevivência), mas altas taxas de natalidade, que agravavam a penúria; nos bandos de maioria masculina, escassez de fêmeas, com baixíssima natalidade, e grande instabilidade política pelas ameaças ao chefe, apesar da abundância de alimentos.

    Ambos os grupos corriam riscos de extinção, um pela baixa taxa de reprodução e o outro pela fome. Aqueles grupos que se submeteram à proibição ao acesso indiscriminado de mulheres, renunciando às mulheres aparentadas, visando à troca com os excedentes de produção do bando vizinho tiveram uma enorme vantagem evolutiva: a possibilidade de estabelecer alianças e desta forma obter maior segurança alimentar. O grupo com o qual efetuavam as trocas, por sua vez, obtinha de imediato maior estabilidade política e em médio prazo o aumento do índice de nascimentos, garantindo a continuidade do bando. O sucesso obtido pelos primeiros seres humanos que adotaram estas práticas fez com que elas acabassem por generalizar-se entre os grupos sobreviventes (a seleção de comportamento) por tratar-se, não de uma qualidade inscrita nos genes, mas por representar um costume, ‘um valor’, uma lei cultural, enfim, que resultava em benefícios econômicos que influenciavam as chances de sobrevivência do bando.

    Segundo a sua clara explicação das diferenças entre o que é herdado e genético, a proibição do incesto parece inserir-se no que é apenas hereditário, uma vez que precisa ser ‘reinstituido’ a cada novo indivíduo.

    Parabéns pelo ótimo blog e desculpe a falta de concisão.

    • oi Dorotea,
      esse é um conceito bem interessante, que faz bastante sentido do ponto de vista “econômico”, ou seja, da gerência das demandas e dos recursos. contudo, pode haver um problema nessa hipótese, pois outras espécies de primatas não-humanos exibem evitação do incesto sem terem divisão de trabalho ou consumo de carne associado, além do fato desses dois aspectos (a divisão de trabalho entre os gêneros e o consumo de carne) serem relativamente recentes na história humana.
      concordo plenamente quando você diz que a proibição do incesto tem que ser reinstituida em cada nova geração.
      abraço.

  4. Oi Gerardo

    Nas minhas poucas leituras sobre etologia, na maioria dos bandos o macaco líder (Alpha) expulsa os filhotes machos eclipsando as fêmeas, o que evitaria o incesto destes com sua mãe e irmãs. Entretanto, o macaco Alpha (e suas descendentes fêmeas) continua praticando o incesto largamente. É como se a proibição ao incesto dos rebentos machos fosse apenas um efeito colateral da dominância do chefe, do direito à posse exclusiva das fêmeas.

    É possível que a diminuição dos pelos no corpo, estreitamento da pelve com a bipedestação – e, em consequência filhotes comparativamente ainda não bem desenvolvidos – tenha tornado indispensável a divisão de trabalho dos humanoides, enquanto os demais primatas não precisam exibir este comportamento pois seus filhotes logo ao nascer já se mostram aptos a agarrar-se aos pelos da mãe, enquanto ela pula de galho em galho. Pelo que sei, o consumo de carne está ligado ao crescimento do cérebro e, para tanto, a necessidade de consumo proteico.

    Sendo assim, a proibição ao incesto propriamente dita seria um comportamento exclusivamente humano. Segundo Lévi-Strauss, “uma intervenção sobre a natureza que significaria uma transformação, ou passagem. Antes dela a cultura ainda não está dada. Com ela a natureza deixa de existir, no homem, como um reino soberano. A proibição do incesto é o processo pelo qual a natureza ultrapassa a si mesma”.

    Teria também um efeito ‘estruturante’ na organização da sociedade em famílias, com a consequente necessidade de individuação muito além da genética. Quem é a mãe, quem são os irmãos, os primos e tios e, depois, quem é o pai ? São questões fundamentais para a identidade humana, e constituem-se nos critérios fundamentais, ainda que de exclusão, da seleção sexual humana.

    Gostaria de ler mais sobre comportamentos de evitação do incesto em primatas não humanos, ficaria muito grata se você me indicasse alguma bibliografia.

    abç

    • oi Dorotea,
      minhas leituras sobre comportamento de primatas não humanos resumem-se basicamente a Franz de Waal (há vários livros dele muito bons, mas não sei se há em português…). sei que a Jane Goddall tem um ensaio chamado “Incest Avoidance Among Chimpanzees”, mas que eu não li. há um livro que parece ser bem interessante, chamado “Inbreeding, Incest, And The Incest Taboo: The State of Knowledge at the Turn of the Century”, de vários autores, que tem um capítulo chamado “incest avoidance in primates”…
      seu comentário me deixou com mais dúvidas que respostas. se a proibição do incesto veio antes das modificações que caracterizam os primeiros Homo, ou seja, se é um comportamento prévio de primatas, então a hipótese de Lévi-Strauss poderia ser interpretada como uma “ampliação” ou fortalecimento da evitação do incesto. mas minha maior dúvida vem da oposição Freud/Westermarck… se, como parece ser o caso, os machos-alfa em primatas “evitam” o acesso às fêmeas, os demais machos mantêm sua vontade sexual ativa, ou seja, não há uma diminuição do interesse pelo convívio (o imprinting negativo de Westermarck), e sim um não-do-pai, mais aos moldes do raciocínio de Freud.
      é algo a se pensar… enquanto isso, fiquei com vontade de ler o “Inbreeding, Incest, And The Incest Taboo”… dá pra ler algumas partes no Google Books, mas é muito chato ler no computador! o link é esse aqui: http://books.google.com.br/books?id=OW1nuQxcIQgC&printsec=frontcover&dq=inbreed+incest+taboo#v=onepage&q=&f=false .
      abraços.

  5. Pegando o gancho:
    “um menino adotivo criado com outras crianças não vai desenvolver interesses sexuais por sua irmã de criação”, mas poderia desenvolver interesse sexual por um parente próximo – irmã ou mãe – sem ter a consciência de seu parentesco?

    Tanto por Freud como por Westermack, aparentemente, o menino poderia desenvolver tal interesse; visto que o menino não receberia o não do pai nem desenvolveria o imprinting negativo por aquela pessoa que, no exemplo, aconteceria de ser sua parenta próxima.

    A não ser que houvesse algum tipo de reconhecimento de parentesco por sinais químicos – o que me parece improvável entre primatas.

    O horror ao incesto não seria inerente ao ato, mas seria dependente da consciência do mesmo.

    O rei Édipo não teve a consciência a tempo…

    • Oi Fernando,
      de fato, a evitação do incesto se dá entre indivíduos que se reconhecem como da mesma família, e esse reconhecimento se dá durante o desenvolvimento comum. Assim, uma irmã adotiva é certamente muito mais irmã que uma irmã biológica com a qual não se tem contato, tanto para Freud como para Westermarck.
      A questão do Rei Édipo (que, na prática, não era Rei e sim Tirano…) é um pouco mais complexa. como a Dorotea documentou em seu comentário, há irmãos que, mesmo após o conhecimento de seu grau de parentesco, continuam voluntariamente seu envolvimento amoroso. o problema aqui claramente não é relacionar-se com o irmão biológico, e sim relacionar-se com aquele que se considera irmão. no caso de Édipo, seus sofrimentos são dois: em primeiro lugar, para o grego, a hýbris independia da consciência ou não de seu executor, pois poderia ser considerada um resultado de seus descomedimentos prévios. além disso, édipo sabia antecipadamente que isso iria ocorrer, e mesmo não tendo conhecido Iocaste como mãe, Édipo se horroriza diante da idéia em si. e como diz Tirésias na peça, “terrível o saber se ao sabedor é ineficaz”.
      abraço.

  6. Gerardo

    As idéias em relação à evitação do inceto podem, grosseiramente, ser divididas nesta oposição Freud/Westermarck. Enquanto os biólogos evolucionistas interpretam o fenômeno como o sucesso evolutivo na evitação da homozigose, isto é, não há desejo incestuoso, Westermarck acredita que a habituação se encarrega de acabar com ele.

    Por outro lado Freud e Lévi-Strauss acreditam que o desejo existe, sim, e apenas a intituição de uma norma severa – uma lei cultural – pode exercer algum controle sobre ele. Porque existiria uma lei proibindo o incesto, se não houvesse o desejo de praticá-lo?, perguntam-se. Ambos, de maneiras distintas, acreditam que a instituição da norma de uma certa forma ‘inaugura’ a humanidade. Diferem nos motivos pela qual ela teria se mostrado necessária, e o quê teria mobilizado os antropóides a cristalizar este comportamento. Freud, apoiado nos estudos de Frazer sobre as religiões totêmicas, acredita que o sentimento de culpa pela morte do pai nos macacos filhos, aliado à instabilidade política pela rivalidade surgida entre os irmãos, faria com que eles tivessem uma retardatária submissão à vontade do pai com respeito ao acesso às femeas do bando, fazendo com que partissem em busca de mulheres de fora. Já Levi-Srtauss acredita que quem era afastado do bando eram as filhas, em troca de alimentos e em prol do estabelecimento de alianças entre bandos vizinhos.

    A pesquisa em genética molecular parece dar razão a Levi-Strauss, uma vez que a análise bioquímica demonstrou que de 80 a 85 por cento dos marcadores de DNA – mt (exclusivamente femininos) estão distribuídos uniformemente ao redor do mundo, porém apenas 36 por cento do DNA –Y está nesta mesma condição entre os homens. Isso indica que a herança feminina se dispersou muito mais que a masculina, e apóia a tese de qualquer antropólogo que proponha um modelo de intercâmbio genético através das mulheres, permanecendo os homens fixos no seu grupo de origem.

    Pelas minhas leituras em etologia, Jane Goodall foi uma delas, eles mantem sua vontade sexual ativa, contida pelo ‘não’ (seja o que for que isto signifique entre os macacos) do pai (Alpha), até ele ficar velho e fraco, quando é deposto ou assassinado. Claro que, como também noutros animais não carnívoros, apenas machos superiores vão deixar descendência, pois a rivalidade entre os irmãos é feroz.

    Obrigada pela dica do “Inbreeding, Incest, And The Incest Taboo”, já está encomendado. Vou procurar o que há em Franz de Waal sobre o assunto. Se ainda não lestes, vale a pena o Estruturas Elementares de Parentesco, de Lévi-Strauss, principalmente a primeira parte do livro. A segunda é chata e só tem interesse para antropólogos.

    Eu, a cada ano que passa, tenho também mais dúvidas do que respostas. Esta idéia de um marco tão preciso entre os macacos antropóides e os humanos, através de uma lei cultural, me intriga pela relação que isso possa ter com a subjetividade: os processos de pensamento, a capacidade de simbolização, a religião, a arte, a moral, etc…

    abç

    Fernando

    Tem um caso + ou – recente na Alemanha, mas ambos – que já tem 4 filhos – tinha conhecimento que eram irmãos, apesar de se conhecerem tardiamente. A cada filho ele ia para a cedeia, mas quando saia, voltavam a ficar juntos. Sei de outro caso inglês, com inconsciência da situação, mas não encontrei os dados para mais detalhes.

    O incesto é, de fato, MUITO comum, especialmente entre pai e filha, mesmo com a óbvia consciência. Eu concordo com a idéia de que o horror ao incesto dependa da consciência do mesmo. O casal inglês que citei acima não causou tanta comoção pública e não tiveram tantos problemas como o alemão.

    As leis anti-incesto têm um caráter que na maioria das vezes extrapola a consangüinidade, atingindo indivíduos apenas simbólica ou nominalmente vinculados ao parentesco, como padrastos e madrastas, enteados, tios e tias políticos.

    abç

    • Dorotea,
      mais uma vez obrigado pelo seu comentário, que em si já é um artigo…
      Franz de Waal é um primatologista muito interessante, com diversas idéias com as quais eu concordo, mas que contudo é totalmente favorável ao efeito Westermarck, coisa que me incomodou logo de início… como você mesma diz, “porque existiria uma lei proibindo o incesto, se não houvesse o desejo de praticá-lo?”. cada vez mais penso não haver dúvidas quanto ao fato que, entre primatas, os machos cruzarem com suas parentas, se chance lhes for dada. o capítulo que trata do incesto no egito romano do livro “inbreeding, incest and the incest taboo” é claro a esse respeito (apesar de suas conclusões não cocluirem muita coisa…).
      uma última observação: para Freud, o complexo de Édipo é o fator causal que principia a civilização. contudo, há uma circularidade nesse raciocínio, como já havia notado Malinowski em seu Sexo e repressão na sociedade selvagem: “Este é o ato original da cultura humana e, no entanto, no meio da descrição o autor [Freud] fala de “algum progresso na cultura”, refere-se ao “uso de uma nova arma”, e assim equipa seus animais pré-culturais com um considerável acervo de bens e implementos culturais. Nenhuma cultura material é imaginável sem a concomitante existência de organização, moralidade e religião. Conforme mostrarei dentro em breve, isto não é um mero argumento capcioso, mas vai direto ao próprio âmago da questão. Veremos que a teoria de Freud e Jones procura explicar as origens da cultura por um processo que implica a prévia existência da cultura e portanto envolve um raciocínio circular. A crítica desta posição naturalmente nos levará de fato diretamente à análise do processo cultural e de seus fundamentos na biologia.”
      Talvez a hipótese de Strauss evite essa circularidade. nunca o li, vou procurar o “estruturas elementares de parentesco”, obrigado pela dica.
      abraço.

  7. Gerardo

    Você me deixou intrigada com a observação quanto a ‘circularidade do raciocínio” da hipótese de Freud.

    Em primeiro lugar, você concorda com a afirmação de Maliniwsky de que nenhuma cultura material é imaginável sem a concomitante existência de organização, moralidade e religião?

    abç

    • Dorotea,
      a minha resposta é não, pois eu estudo cultura em outras espécies, onde não há religião e provavelmente nem moralidade (o conceito de moralidade, particularmente em primatas, é um pouco mais complicado). para as ciências humanas isso que eu disse é um absurdo, pois só o homem teria cultura. para a etologia, contudo, cultural é um comportamento que é hereditário sem ser genético.
      quanto à circularidade de Freud, devo dizer que nesse ponto trata-se de uma picuinha, um preciosismo de Malinowski: o que ele quis dizer é que o complexo de édipo não poderia ter sido o criador da cultura, pois para que o complexo passasse de pai para filho, a cultura deveria já estar presente.
      abraço.

  8. Gerardo

    Então não se sustenta a crítica de haver uma ‘circularidade de raciocínio’ na hipótese freudiana de que a proibição do incesto venha a ser o ato original da cultura.

    Acredito que as pesquisas em etologia avançaram muito durante o século passado, e o conceito de ‘cultura’ sofreu uma ampliação em relação ao que Freud e os antropólogos da sua época pensavam, o que não invalida as suas idéias sobre o papel da proibição do incesto para a humanidade.

    Já que os biólogos cruzaram fronteiras ao identificar nos animais comportamentos antes considerados privilégios culturais humanos, como a capacidade de comunicação, a produção e utilização de ferramentas (na verdade, seriam parte do fenótipo estendido), talvez necessitemos agora reduzir estes privilégios.

    Mas se, conforme Maliniwsky, precisarmos levar na carona da ampliação do conceito de cultura os processos de pensamento, a capacidade de simbolização, a religião, a arte, etc… também acho que estaremos enveredando por caminhos errados.

    A questão da ‘moral’ é realmente complicada…

    • oi Dorotea,
      para um etólogo, um comportamento cultural vai bem além que o uso de ferramentas, por exemplo. quando uma gralha ensina a uma gralha menor que um dado animal, por exemplo um gato, é um inimigo, temos um aprendizado hereditário não-genético. isso para um etólogo é cultura.
      penso que, para não haver mal-entendidos entre os etólogos e as várias áreas das ciências humanas (antropologia, psicologia etc…), há uma alternativa: usar o termo cultura no sentido mais amplo, geral, de qualquer comportamento hereditário não-genético, e usar o termo civilização para aquilo que Malinowski e outros antropólogos chamam de cultura (típica do ser humano, com religião, moralidade etc…). aliás, esse é um problema que o editor inglês da standard edition de Freud fala na introdução de “o futuro de uma ilusão” (ESB vol XXI), sobre a tradução de Kultur por Civilization.
      a propósito, achei hoje em uma livraria o Estruturas Elementares de Parentesco… já está na lista de próximas leituras.
      abraço.

  9. oi Gerardo

    O aprendizado pela gralha do perigo representado por um gato pode ser um comportamento herdado e genético ao mesmo tempo, não? Como parte do fenótipo estendido? Não seria o caso de algumas espécies cujos indivíduos têm de se adaptar a diferentes habitats. Estou lembrando dos macacos japoneses, espécie em que se observa que alguns vivem nas montanhas geladas e outros na beira da praia.

    Ainda sobre a “evitação do incesto” nos macacos, você acha que o controle da aliança é o foco do “nao” do macaco Alpha?

    O que se torna muito claro nas hipóteses de Freud e Levi-Strass é que as alianças estabelecidas passam a sofrer um controle social, não sendo mais aleatórias. Podem ser mais ou menos restritas, mas não há sociedade humana onde elas são completamente indiferentes à coletividade. Sempre que foi observada uma tolerância para com este comportamento, tratava-se de uma liberdade que poucos tinham acesso – a realeza para manutenção de castas e dinastias. Mesmo no antigo Egito, onde o comportamento era mais amplamente permitido, apenas a irmã mais velha era disponível ao casamento. Existiam leis, portanto, a regular as alianças.

    Outra possível diferença entre o comportamento humano e o dos macacos é que, a despeito do desejo permanecer ativo em ambas espécies, nos macacos não parece haver submissão à lei, mas medo pela própria vida depois de perder uma luta feroz com o ‘pai’. Não que o medo não seja um importante fator de dissuasão entre os humanos: medo das consequências legais, da opinião pública, etc…

    abç

    • oi Dorotea,
      o exemplo que dei sobre gralhas e gatos pode ser melhor explicado: uma gralha que já reconhece um gato como ameaça sinaliza a presença desse para uma gralha mais nova, e faz uma vocalização específica. a gralha mais nova observa o gato que se aproxima e, devido à vocalização da gralha mais experiente, aprende que o gato é uma ameaça, e por sua vez vocalizará para outras gralhas ao avistar um gato. a informação é assim passada de geração em geração, mesmo por uma gralha que jamais teve qualquer experiência dolorosa com um gato: ela aprendeu que aquilo é um perigo, e passa a informação para as gerações seguintes. o que temos aqui é simples: a informação é cultural, isso é, hereditária sem ser genética. os mecanismos necessários à aquisição do conhecimento e à sua transmissão não mudam essa classificação.
      em relação a outros primatas que não o ser humano, discordo um pouco de você, acho que pode haver sim submissão à lei (por mais que seja árido o campo da etologia cognitiva, tentando lidar com os estados mentais internos de outras espécies…): há muitos registros de machos submissos que demonstram claramente medo do macho alfa mesmo sem nunca terem entrado em conflito com ele e nunca terem portanto “levado uma surra”. os sinais faciais do líder são claros e inequívocos mesmo para um macaquinho jovem e inexperiente.
      abraço.

  10. Oi Gerardo

    Já na posse e lendo tuas ótimas dicas ( Imbreeding, Incest, and the Incest Taboo e Eu, Primata ) te desejo boas festas de fim de ano e que possamos continuar nosso diálogo enriquecedor, pelo menos para mim, no próximo ano.

    abraço

  11. Olá. Nem sei se alguém vai ver isso, mas espero que possam me ajudar.

    Esta matéria propõe supormos que a chance de nascer uma criança com uma dada condição genética letal seja de 0,2% e que a endogamia aumente essa chance para 0,8%, mas diz que os números reais são bem mais complicados que isso.

    Tentei pesquisar um pouco no google, mas não achei nada que pudesse me ajudar. Alguém saberia me dizer os números reais ou ao menos uma fonte confiável?

    Tanto faz responderem por e-mail (g.willvaz@gmail.com) ou por aqui mesmo.

    Agradeço desde já.
    Abç.

    • Oi Will,
      o problema com os números reais, e por isso eu fiz um exemplo ilustrativo, é que eles dependem do gene específico que você está analisando. dessa forma, para um gene dado, você tem que saber as frequências alélicas na população e o coeficiente de endocruzamento do casal. para “todas” as condições genéticas possíveis, o cálculo fica praticamente impossível.
      caso você queira ler a respeito, uma fonte confiável é “Genética humana”, de Vogel e Motulsky (Human genetics); há visualização parcial no google books.
      abraço.

  12. Caro Gerardo Furtado

    Tenho lido o seu blog e gostava de contar algo de que tenho conhecimento. Trata-se de um militar, que estando na guerra, conheceu uma mulher de quem teve uma filha. Como era casado, só soube mais tarde por carta, depois alguns meses de ter regressado a casa. Quando partiu para a guerra já tinha um filho da esposa. Quando este rapaz fez 24 ,foi em serviço da firma em que trabalhava, para o país (agora em paz), onde seu pai esteve na guerra há 20 anos atraz. Lá conheceu uma linda mulher com quem casou, regressando ao fim de 2 anos já com uma bébe linda. Nunca soube que sua mulher é sua irmã, pois o pai deles nunca o divulgou até à morte, só descobriu ao fim de 20 anos quando a sogra veio de férias a sua casa e viu o seu albúm de fotos de familia.
    Este incesto culpado pelo destino, nunca mais deixou de perturbar este casal que se ama. Que fazer em relação à menina que é saudável e tem hoje 25 anos?
    Um abraço
    Marcelo Castro

    • De fato uma tal descoberta é perturbadora, mas penso que não houve incesto aqui, uma vez que o incesto é caracterizado pelas relações entre indivíduos da mesma família, e o casal em questão não era sequer da mesma família, apesar de compartilharem geneticamente o pai. Em relação à menina, sua situação psicológica é um pouco mais delicada… mas, ainda assim, penso que ela deve compreender o acidente da situação toda, tentar aceitar o envolvimento amoroso de seus pais e percebê-los como um casal normal, como outro qualquer.
      Abraço.

  13. Poderia me responder uma pergunta? Não encontrei essa informação no google. Tenho alguns gatos de 8 meses que já estão no cio com a própria mãe.
    Isso não gera descendentes defeituosos, como é provável acontecer com humanos nessas condições?

    Obrigado.

    • Em primeiro lugar, eu gostaria de recomendar que você considerasse a castração. Algumas pessoas ainda têm restrições quanto a isso, principalmente os donos de cães machos, mas num mundo já superlotado de cães e gatos abandonados eu penso que todos nós devemos evitar a procriação doméstica.
      Caso eles cruzem, não é muito provável que ocorram anomalias. Contudo, uma anomalia que parece estar relacionada ao endocruzamento em gatos é a fusão de vértebras caudais, que não é algo grave – uma das minhas gatas por sinal tem essa fusão vertebral.
      Caso você decida pela castração, começe pelas fêmeas, e em seguida passe para os machos.
      Abraço.

  14. Legal o estudo, mais veja se nao estou certo, tudo bem q a probabilidade é pequena mais se em um grupo social pequeno esses cruzamentos se tornarem constantes nao aumentaria a chance de efeitos indesejaveis, sera que o homem primitivo não perceberia isso, afinal é uma percepçao de grupo

  15. Pingback: Um tabu social universal: O incesto é uma questão biológica ou social? | Diário de Biologia

  16. Durante toda minha vida ouvi (principalmente de professores de ciências no colégio) que o incesto ou relações entre familiares geraria filhos defeituosos.
    Mas graças ao seu texto, agora sei que a probabilidade disso acontecer continua sendo muito baixa. Obrigado.

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