Darwin não disse isso

O Facebook é o novo ambiente de propagação de uma praga que já ocorre há um certo tempo. Bem antes das redes sociais na internet se tornarem populares, andou circulando por aí uma poesia bastante piegas (talvez possa até dizer dela que era um tiquinho interessante) chamada “Instantes”, atribuída a Jorge Luis Borges. Para quem não lembra é aquela que começa com “Se eu pudesse novamente viver a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros…”. Quem quer que já tenha lido dez por cento de um conto de Borges sabe que ele jamais seria o autor daquela peça melosa e açucarada. Mas, na internet, onde é tão fácil escrever (e reproduzir) informações, a praga das falsas autorias se alastrou. São bobagens (geralmente mal escritas, diga-se, sem querer ofender…) atribuídas a Luís Fernando Veríssimo, Shakespeare, Fernando Pessoa, Kafka… Lembro-me de, um dia, em sala de aula, encontrar fixado no quadro de avisos um texto de autoajuda, com todos aqueles chavões os quais não é necessário aqui reproduzir, que lá foi posto com o intuito de relaxar os alunos e diminuir a tensão anterior ao vestibular, o que é uma iniciativa louvável. Findando o texto, porém, havia um garrafal “Carlos Drummond de Andrade”. Bem, não tenho nada contra uma pessoa escrever um texto de auto ajuda, um texto motivacional. Mas assinar seu texto com o nome de Drummond é uma desonestidade, para dizer o mínimo. No Facebook encontramos Bob Marley, Clarice Lispector, Arnaldo Jabor e uma legião de outras criaturas cujo nome subescreve as mais diversas bobagens.

Muito bem, estava eu a perder o meu tempo (e o dos outros) no Facebook quando me deparo com uma postagem de um colega, onde na figura, que reproduzo abaixo, podemos ler uma simpática frase do nosso querido Charles Darwin. À primeira vista, nada de errado, certo? Bem, para começo de conversa, Darwin nunca escreveu isso. Depois de citar as fontes (sim, citar as fontes é um hábito perigosamente em desuso, tanto que um grande número de pessoas nem sabe o que isso significa), tentarei explicar por que essa frase não faz sentido, nem pra Darwin (aqui vou usar muita suposição, uma vez que Darwin já morreu e, a não ser que eu tenha essa mui complexa capacidade de falar com os mortos, não posso saber o que se passava na cabeça dele) nem para a biologia evolutiva dos dias de hoje.

Eis a imagem que circulou pelo Facebook (o selo “Darwin não disse isso” foi adicionado por mim).

Dizer que determinada personagem não é o autor de uma citação é uma tarefa não apenas inglória como também desnecessária: a pessoa que afirma uma determinada autoria é quem tem o ônus da prova, é ela quem deve ir procurar nos livros, revistas, entrevistas ou outros documentos e nos mostrar a citação. Mas, nesse caso, há dois facilitadores. Em primeiro lugar, toda a obra de Darwin (inclusive cartas e outros documentos pessoais) está digitalizada e é facilmente encontrada, como por exemplo no excelente site The Complete Work of Charles Darwin Online. Assim, é fácil fazer uma busca por uma palavra ou, para melhorar o filtro, por um conjunto de palavras. Mas, além disso, eu tive certa sorte: num site da universidade de Cambridge, não só essa citação (juntamente com outras) é explicitamente dita como não sendo de Darwin, como a universidade oferece um prêmio, uma cópia de uma obra, à primeira pessoa que seguramente identificar a origem da citação.

O que mais nos interessa aqui, contudo, é a interpretação dessa frase. Em primeiro lugar, me parece muito estranho Darwin falar de “espécies”. No pensamento darwinista ortodoxo qualquer nível organizacional pode sofrer seleção e, por conseguinte, ser o nível de ocorrência do processo evolutivo. Mas, para quem já leu Darwin, é estranho ouvir ele falar de “espécie”… Ele normalmente falaria de população, ou variedade, ou grupo, ou mesmo indivíduo. Convenhamos, porém, que essa é uma possibilidade. Há outro problema, e esse relaciona-se com as noções modernas da biologia evolutiva.

Essa frase associa evolução a mudanças no ambiente. Essa associação é infelizmente tão ubíqua que dificilmente a vemos sendo analisada ou mesmo contestada.  Acontece que, compreendendo “evolução” como mudanças na composição genética de uma população, tanto pode ocorrer uma notável evolução nas espécies de um meio estável como, o mais importante, pode não ocorrer evolução alguma nas espécies de um meio instável. A razão disso é tão importante que irei aqui usar um bullet point:

  • A evolução é uma contingência.

O que quero dizer com isso é que o processo evolutivo é algo que ocorre, mas que pode muito bem não ocorrer. Uma população pode sofrer sucessivas mudanças em sua composição, ou ficar milhares de milhares de anos praticamente inalterada. Temos que parar de associar evolução a mudanças no ambiente, e sucesso evolutivo à capacidade de se adaptar a essas mudanças. Futuyma tem um parágrafo bastante esclarecedor a esse respeito:

It is naïveto think that if a species’ environment changes, the species must adapt or else become extinct. Not all environmental changes reduce population size. Nonetheless, an environmental change that does not threaten extinction may set lip selection for change in some characteristics. Thus white fur in polar bears may be advantageous, but not necessary for survival. Just as a changed environment need not set in motion selection for new adaptations, new adaptations may evolve in an unchanging environment if new mutations arise that are superior to any pre-existing genetic variations. We have already stressed that the probability of extinction of a population or species does not in itself constitute selection on individual organisms, and so cannot cause the evolution of adaptations.

Se quisermos considerar que a espécie é o nível onde se dão os processos seletivos, seria muito mais acertado dizer que a espécie que sobrevive (seja isso o que for…) é aquela que apresenta vantagens competitivas, apenas isso.

Por fim, me parece que essa frase tem um pouco do cheiro dos discursos de autoajuda que surgiram no fim do milênio passado, imbuída de um inegável juízo de valor: quem é capaz de suportar mudanças é melhor, quem é capaz de se adaptar em um novo meio é melhor. Bem, no mundo empresarial esses podem de fato ser conselhos de grande valia. Mas Darwin não disse isso.

Post Scriptum: Acabei de ver no site da universidade de Cambridge que o autor dessa frase foi identificado. Segundo o site, “the source he has identified is in the writings of Leon C. Megginson, Professor of Management and Marketing at Louisiana State University at Baton Rouge.”

18 comentários sobre “Darwin não disse isso

  1. Gostaria de parabenizar pelo blog! Li quatro textos muito bons, tanto pela temática quanto pela construção textual. Não sou da área de biologia, mas o que li não só lançou luz sobre alguns assuntos como também ofereceu mais.

  2. Essa do Jorge Luís Borges é mais velha que a Internet. O texto foi atribuído a ele – e não sei como vingou, não tem NADA a ver com ele!- desde 1986. Teria sido, inclusive, escrito em seu leito de morte!
    Também vemos um mal semelhante na net: Uma frase dita por um personagem, ou por um quase personagem, uma vez que os mesmos estão nas músicas, com eu lirico ou não. Então a tal frase é repetida como dita pelo autor e não pelo personagem que o ele criou.

    • Oi Marisa,
      Há uma explicação dessa história do Borges: numa revista argentina, havia uma caricatura do Borges numa página e essa poesia em outra (que não é de uma norte-americana, como dizem, mas de um norte-americano…), e um locutor de rádio leu como sendo do borges. Em poucos meses, a autoria estava vinculada. Quem propagou essa poesia no Brasil parece ter sido o Moacir Scilar, que depois pediu desculpas por não ter verificado a autoria… Nem precisava verificar!

  3. Essa frase não é associada a Darwin só agora. Ouço ela associada a ele desde a escola, direto dos lábios da professora de biologia.
    Inclusive achava que era dele mesmo.

  4. Olá, gostei do seu artigo… só discordo quando diz que o Arnaldo Jabor não subscreve as bobagens escritas, pois seria muito difícil alguém escrever disparates pior do que os deles… hummmm… quem sabe o Diego Mainardi

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  8. Olá tenha um bom dia, gostei muito de seu Artigo e tomei a liberdade de inseri-lo na comunidade: Afinal, quem é o autor? (Facebook), cujo objetivo é: Alertar sobre troca de autorias, textos apócrifos, possíveis plágios, divulgar, alertar e esclarecer quem são os verdadeiros autores. (Direito autoral é coisa séria!). No site (pessoal) que passei os dados para esta postagem em Artigos anda repleto de avisos das falsas atribuições, citadas por aqui. Obrigada por dividir! Rosangela Aliberti.

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