Por que dormimos? Por que sonhamos?

Quando comecei a me interessar por psicanálise (interesse que se esvaeceu em pouco tempo…) tive a chance de participar de um congresso comemorativo dos cem anos de publicação da “Interpretação dos sonhos”, de Freud. Confesso que essa é uma obra que não li, pois sou mais interessado no chamado ciclo “antropológico” de Freud (“o mal estar na civilização”, “o futuro de uma ilusão”, “totem e tabu”, “Moisés e o monoteísmo” etc.), mas conheço um pouco do livro, e já li algumas passagens. Deixando de lado a questão da validade das hipóteses freudianas, é interessante notar que a natureza dos sonhos depende necessariamente das particularidades únicas do aparelho psíquico humano, que se supõem inexistentes em outras espécies animais. Nesse congresso em particular a maior parte dos palestrantes tinha uma orientação lacaniana, e daí a importância dada à palavra e aos discursos na atividade onírica: boa parte das análises e interpretações baseavam-se na natureza do discurso, nos detalhes às vezes mínimos da associação das palavras. Pode-se supor que não há sonhos se não houver linguagem, da mesma maneira que muitos teóricos afirmam que não há pensamento se não houver linguagem; logo, não há sonhos se não houver linguagem e pensamento. Desta forma, mesmo que validemos as hipóteses freudianas e lacanianas, não poderíamos utilizar (ou pelo menos não da forma que hoje se encontra…) o que foi construído pela psicanálise para tentar explicar a origem do sono e dos sonhos, por uma razão bastante simples: uma grande quantidade de outros animais dorme e sonha.

Quero deixar claro, para evitar qualquer tipo de desentendimento ou qualquer aparência de discurso ofensivo, que tenho um grande respeito pelas ciências humanas; minha mulher é psicóloga, minha irmã é psicóloga, e meus mais próximos amigos são da área de “humanidades”: um é filósofo e o outro é historiador… assim, as idéias e hipóteses dessas ciências não são estranhas para mim. Contudo, creio que ainda há um entrave muito grande em toda a área das ciências humanas, uma verdadeira herança cartesiana, em que se assegura que todo e qualquer animal que não seja um humano é apenas uma máquina, e que não tem estados mentais internos. As maiores oposições que a etologia cognitiva enfrenta não vêm dos biólogos ou dos zoólogos, e sim dos “humanistas”, por não aceitarem admitir a existência de raciocínio em não-humanos, se comportando como os clérigos de Galileu. Lembro-me de uma vez minha mulher falar para uma de suas professoras que outros mamíferos sonham, e de ela ter retrucado que “isso é impossível, apenas homens sonham”. Não posso aceitar que ainda se pense assim porque “Descartes disse”… isso é um argumento de autoridade, e em ciências não se deve aceitar tal tipo de argumento.

Isso dito, convém tomarmos muito cuidado com a criação de grupos parafiléticos. É comum por exemplo ouvirmos a pergunta “os outros animais pensam?”, ou então “os outros animais têm emoções”? quando se fala em animais, temos (há dúvidas!) um grupo monofilético, ou seja, um clado. Mas quando se fala nos “outros animais”, estamos falando de um grupo formado por todos os animais, com exceção do ser humano: isso é um grupo parafilético. Logo, é fundamental tomarmos esse cuidado. Quando se pergunta “os outros animais têm emoções”, podemos dizer que um coral dificilmente as teria, mas que uma raposa certamente tem. O ser humano é muito mais aparentado com uma raposa que com um coral; assim, “outros animais” é um termo que carece de sentido (em tempo: mais incorreto ainda é tratar o ser humano como uma entidade separada, esquecendo que somos animais. Tome por exemplo uma manchete como “cientistas descobrem que animais têm emoções”: podemos daí concluir que o ser humano deve ser um fungo, ou uma planta…).

Por que, então, não podemos usar o conhecimento acumulado pela psicanálise para tentarmos elucidar a função do sono e dos sonhos, que ainda permanecem em grande parte um mistério para as ciências? Porque tais hipóteses referem-se primordialmente ao modo “humano” de sonhar, em relação à linguagem e ao pensamento falado, e não poderiam ser usadas para explicar a origem do sono ou dos sonhos. O fato importante, a contribuição da biologia evolutiva para o debate, é que o sono deve ter surgido há muito tempo na história evolutiva. Como se sabe disso? Não quero aqui me aventurar a falar de grupos que não conheço (se alguém tiver informações sobre insetos, sobre aracnídeos ou sobre cefalópodes — animais com capacidade de raciocínio admirável —, comentários serão bem-vindos), e por isso ficarei apenas nos tetrápodes: todos os tetrápodes dormem, em períodos que variam de acordo com a espécie. Outra curiosidade, todos os tetrápodes têm lateralização ou assimetria cerebral (como você, que é destro ou canhoto…). E, entre os tetrápodes, todos os mamíferos sonham, intercalando períodos de sono NREM (não-rem) com sono REM (rapid eye movement). O que concluímos é que, por mais desconhecida que seja a função do sono (e, mais que isso, a dos sonhos), a atividade de dormir deve ter surgido há muito tempo, uma vez que os ancestrais de tetrápodes já dormiam.

Gatos em minha casa: Frederico Felino (e) e Niki Lauda (d), componentes da equipe olímpica de sono sincronizado.

Há várias hipóteses para explicar o sono (e os sonhos), algumas bastante interessantes e promissoras; contudo, falar a respeito delas não foi meu objetivo aqui. O que quero defender é que, qualquer que sejam as hipóteses construídas, elas têm que levar em conta o aspecto evolutivo do problema do dormir/sonhar, ou seja, têm que dar conta da atividade de dormir/sonhar em um grande número de animais, e não apenas no ser humano.

Perceba, para finalizar, que em momento algum eu quis invalidar qualquer interpretação freudiana dos sonhos. Podemos ter aqui um cenário bastante simples: os primatas já sonhavam, e o ser humano, ao desenvolver uma linguagem falada extremamente complexa, incorporou essa linguagem em seu mundo onírico; daí as interpretações lacanianas dependerem tanto da linguagem. Lembro-me dos sonhos do pequeno urso órfão do maravilhoso filme “L’ours”, de Jean-Jacques Annaud… Por falar nisso, se as aves sonham, como deve ser o sonho de um animal que tem sono uni-hemisférico (ou seja, um hemisfério dorme enquanto o outro fica acordado, o que ocorre em boa parte das aves e em alguns mamíferos marinhos)? Será que um lado sonha, enquanto o outro lado permanece acordado?

11 comentários sobre “Por que dormimos? Por que sonhamos?

    • pela sua pergunta, suponho que sua formação seja em psicanálise, então vou colocar minhas impressões, daí você diz se concorda ou não. creio que um cientista se acostuma com o processo científico de construção do conhecimento, e fica pouco tolerante a enunciados que não possam ser falseados. meu desencanto veio não com a psicanálise, mas com os psicanalistas modernos (o que dá no mesmo). lembro-me da última palestra a que fui, em que decidi abandonar de vez o estudo da psicanálise: era uma palestra sobre os três ensaios sobre a sexualidade, com o prof. Marco Antônio Coutinho e outros professores da Uerj, se não me engano. fiz uma pergunta sobre as pesquisas atuais com inversão para uma professora palestrante, e ela me respondeu “como assim atuais?”, no que eu retruquei “quais são as descobertas novas sobre esse tema, já que faz cem anos que Freud escreveu sobre isso”, e ela respondeu “vale o que ele escreveu”. foi demais pra mim. imagino que Freud, um cara que modificava constantemente seus textos, caso reencarnasse, ficaria excitadíssimo para saber o que há de novo 80 anos depois de sua morte… e se frustraria com respostas como essa.

  1. Obrigado pela resposta.
    Suposição incorreta, eu não tenho formação em psicanálise, já pretendi ser psicanalista e também já me ‘desencantei’ com a mesma, basicamente por um dos motivos apontados: a falta de falseabilidade das teorias psicanalíticas. Eu, particularmente, ainda vejo alguns ‘proveitos’ desses meus ‘estudos’ em psicanálise, mas vejo que em muitas afirmações que necessitam de evidências tão fortes quanto o que se afirma… o que, como vc apontou, a psicanálise deixa muito a desejar.
    Thanks again
    e bom blog

  2. e quanto a ausência de pesquisas após a morte de Freud…
    eu acho essa informação um pouco turva, e acho que vc sabe muito bem das várias ‘releituras’ que houve dos escritos freudianos (citando Lacan, como vc já mencionou, Melanie Klein, Winnicot) inclusive com a inserção de novos conceitos na teoria e na prática psicanalíticas. E eu mesmo já li sobre algumas possíveis interseções entre neurociências e psicanálise e um amigo meu está a realizar pesquisas sobre algo semelhante envolvendo neurobiologia e psicanálise. Realmente é lastimável a existência dessa sacralização de Freud e dos textos Freudianos, tornando-os inquestionáveis e intocáveis por vários psicanalistas, mas creio que uma parcela dessa falta de ‘significativos avanços’ (talvez uma parcela significativa ou não) seja devido ao próprio tempo de existência da psicanálise e da dificuldade inerente da realização de reais inovações e significativos avanços, possibilitados apenas por um restrito número de interessados dentre os poucos atualmente interessados em psicanálise. Apesar de tudo isso, a falta de falseabilidade é o grande obstáculo para uma avaliação séria e dignamente científica da psicanálise, deixando-a relegada à companhia de tantos outros esoterismos, pseudociências e aos círculos ‘intelectuais’ literários.

    • com certeza há uma enorme infinidade de pesquisas após a morte de Freud, mas para alguns psicanalistas isso tem muito pouca importância. sobre a falta de falseabilidade, o curioso é que apesar de tudo Freud tem um texto muito bom, de 1895, chamado “projeto para uma psicologia científica”.

  3. Gerardo,

    gostaria que vc discutisse mais sobre os estados mentais internos dos animais. Para isso, seria interessante se vc passasse pelas críticas do behaviorismo radical ao mentalismo (que inclui todos os animais). Desse ponto de vista, como se enxerga as emoções? Até onde, ou a partir de quando, um comportamento pode ser considerado emocional.

    Abração.

  4. Prezados

    Para não deixar passar em branco, devo citar outros pesquisadores que completaram ou corrigiram Freud, além dos citados. Karl Abraham, Reich (atualmente em ostracismo) Franz Alexander, Michaek Balint, Bowlby e Otto Kernberg, para citar os que me lembro. Foram constribuições tanto à técnica psicanalítica, como à metapsicologia psicanalítica. A palestrante da Uerj talvez não estivesse preparada para responder…

    Quanto a velha discussão se é ou não ciência, por não poder ter seus resultados falsifícáveis, Ernest Gellner tem se esforçado muito para reanimar Popper (o pai desta idéia) e acabar de vez com a psicanálise, além da interpretação marxista da história e da filosofia de Hegel, que sustenta estas abordagens.

    Particularmente penso que os paradigmas modernos são extremamente reducionistas, pelo menos na área em que atuo. Ainda que os ‘Prozacs’ tenham multiplicado o número de pacientes que posso atender, e portanto meu sucesso econômico, não vejo que tenha melhorado substancialmente a vida da maioria dos meus pacientes.

    Ainda assim, o velho Freud (a quem acho que sempre devemos reler) já previa que um dia compreenderíamos os pensamentos, as emoções, etc. em termos de reações químicas cerebrais, fato que a descoberta do funcionamento dos neurotransmissores está confirmando, mas não acredito que ele pensasse que uma pílula pudesse substituir a altura o contato humano.

    Não abandonem o interesse pela psicanálise…

    abç

  5. Muito interessante. Li uma vez sobre o sono ser um ensaio do cérebro treinando o organismo para futuras experiências aleatórias. Como ele tem que processar inúmeras informações durante o dia, seria útil praticar um pouco durante o sono.

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